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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

3.02 Os sofrimentos da modernidade como fatores causadores do alcoolismo- O ALCOOLISMO E A FUGA DA REALIDADE; uma abordagem Cristã e Psicanalítica; DISSERTAÇÃO- PSICOLOGIA PASTORAL



Antes de fazermos uma abordagem mais específica sobre os sofrimentos da modernidade como fatores causadores do alcoolismo vejo a necessidade de analisar, para maior elucidação,  “ O LIVRO DA DOR E DO AMOR”  de J.-D. Nasio, traduzido por Lucy Magalhães ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997). Neste contexto percebemos  o exemplo de Clémence dado pelo autor que começa a elaborar o seu conjunto de argumentos a respeito da dor em perspectiva com o inconsciente. Ele exalta que no momento do sofrimento pedir o esquecimento é uma agressão ao outro, p. 14.  As vezes as pessoas ficam sentido a obrigação

 de consolar o outro, sofredor, mas de acordo com o autor, o luto é construído como uma necessidade até que, finalmente, a intensidade deste sofrimento se gaste, p. 17.  Assim, como a doença nos obriga a buscar a saúde, a dor nos leva a reconstrução do nosso ser. Reconstruir o que fora brutalmente amputado porque mantinha o equilíbrio do psiquismo, p 18. O autor estabelece com precisão as diferenças entre dor e sofrimento, mas deixa-nos a ideia de que a dor está contida no sofrimento quando relata que o sofrimento é uma perturbação global, psíquica e corporal, p. 19.
Aprofundando um pouco mais o conceito, notamos o Dr. Nasio elaborando a ideia de que a “dor sintoma” é a manifestação exterior e sensível da pulsão inconsciente, isto é, dor recalcada, dessa forma, a dor é objeto e alvo do prazer sexual sadomasoquista, p. 20. O funcionamento psíquico é regido pelo princípio de prazer, mas a ruptura brutal com o ser amado torna esse princípio inoperante, p. 21. Então a ruptura brutal com o ser amado torna o princípio regulador do prazer inoperante e este é quem rege o funcionamento psíquico, p. 21. Dessa forma, ele afirma que desprazer não é dor, todavia exprime a autopercepeção pelo eu de uma tensão elevada, mas a mesma dor exprime a autopercepção de uma tensão incontrolável, enfim, o sentimento doloroso não reflete as oscilações regulares das pulsões, mas uma loucura da cadência pulsional, p. 22.
Uma dor psíquica, como a dor de amar, ocorre de forma diferente da dor física porque a sua causa esta fora do corpo. Essa dor, como afeto, resulta do desligamento do ser amado ou coisa amada, em outras palavras essa dor gera um sofrimento interior parecido com uma “destruição” da própria alma. Perder essa ligação é semelhante a uma violenta agressão física, com isto, o equilíbrio é quebrado e o princípio do prazer é abolido, p. 25.
O autor faz uma abordagem do sofrimento do ponto de vista de Freud- ‘o sofrimento oriundo dessa fonte é talvez mais duro para nós do que qualquer outro’- e nesta perspectiva faz alusão ‘a origem do tal sofrimento como uma ameaça’, usando outro fragmento do texto ‘Mal-estar na cultura’ do próprio Freud que diz: ‘provém das nossas relações com os seres humanos’. Sendo assim a dor psíquica é oriunda do sofrimento da perda dos laços de amor com o ser amado. Com isto, percebemos a segunda definição da dor psíquica, do ponto de vista metapsicológico,  que é o afeto que exprime na consciência a percepção pelo eu — percepção orientada para o interior, não da barreira periférica do eu, como no caso da dor corporal, p. 26.
Muitas pessoas fogem de ter uma vida amorosa e apaixonante porque temem a dor do sofrimento da perda deste mesmo amor, isto é, um fato constatado por Freud quando menciona: ‘Nunca estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca estamos tão irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou o seu amor.’ Logo existe um paradoxo, diz o Dr. Nasio, dessa forma, mesmo sendo uma condição constitutiva da natureza humana, o amor é sempre o princípio dos nossos sofrimentos, p. 27. Com isto, abre-se mais o conceito e notamos um transtorno pulsional se instalando por conta da perda do objeto amado e o eu se concentra na representação, mas o Dr. Nasio reafirma que o processo de luto é o inverso da reação de defesa do eu que superinveste na imagem do amado perdido. Se a pessoa não cumprir o luto por causa da falta do desinvestimento o eu fica imobilizado em uma representação, sendo assim o luto se eterniza em um estado crônico, p. 29.
O eu sofre uma clivagem, ou seja, coexistência de duas atitudes contraditórias, uma que consiste em renegação e outra em aceitação. Assim a dor não é pela perda do ser amado, mas por continuar amando a representação dele que está misturada com o próprio eu sofredor, p. 30. Nesta perspectiva é interessante a abordagem do autor e como ele faz a aproximação do eu à loucura pelo fato de  não admitir a perda ou ausência na realidade. O enlutado que procura reviver em sua mente a presença do amado perdido e inclusive na esperança de reencontrá-lo vive uma alucinação que reduz a sua dor devido a sua convicção delirante. Todo este processo se faz em função do amor ser maior que a razão e isto propicia uma realidade alucinada, p. 31. A alucinação com um membro amputado assim como com um amado perdido se dá por conta do superinvestimento da imagem psíquica; isto é, foraclusão, de acordo com o autor, sobrecarga, expulsão e alucinação com a representação, dessa forma, não temos apenas uma negação, mas uma foraclusão, p. 32. O objeto amado perdido (um braço amputado ou o morto) continua vivendo na realidade do eu devido o seu superinvestimento, p. 33.
Considerando o prazer e o desprazer como princípios que regem o psiquismo, sendo que quando o psiquismo esta em tensão temos o desprazer, mas quando a descarga parcial ou total desta tensão temos prazer, logo, o funcionamento normal do psiquismo é de desprazer, isto é, em constante tensão, p. 34. O sistema inconsciente possui uma insatisfação de desejo que nunca realiza-se totalmente, mas esta insatisfação é viva e suportável, dessa forma, o desejo ainda que insatisfeito continua ativo e o psiquismo estável, p. 35. O ser do nosso amor exerce uma função de provocar a insatisfação no inconsciente e não a satisfação. Ele excita o desejo, mas não o satisfaz completamente, dessa forma, garante a insatisfação necessária para se viver, p. 36. O amor também pode ser destinado para minha própria imagem. Mas quando
surge a ameaça de perdemos um desses desejos aparece a angustia no eu. O desaparecimento brusco sem ameaça provoca a dor, isto é, se entrar em luto, se for abandonado, se perder o amor que dedico a mim mesmo ou se sofrer mutilação, sendo assim, essa perda brusca sem ameaça provoca a dor psíquica ou dor de amar, p. 37.
            A fantasia com o eleito, ser amado, que outrora recebera um uma cobertura de amor, ódio ou angustia, diz Dr. Nasio, instala a insatisfação e assegura o equilíbrio do inconsciente; fazendo parte do nosso interior recentrando o desejo e tornando-o insatisfeito, mas tolerável. Com isto temos duas presenças: a viva e a fantasiada. A viva é objeto das nossas insatisfações e a fantasiada é reguladora da intensidade da força do desejo, p. 40. Com isto, é necessária a presença da pessoa viva para que nela seja repousada a pessoa fantasiada sem a qual viria a infelicidade e dor. A pessoa amada e viva, não fantasiosa, é o objeto onde repousa o meu desejo, pois tem um corpo vivo que me provoca e excita, e nela são projetadas as imagens da minha fantasia, p. 41. Sendo assim, posso constatar que existe uma suposta inversão da fantasia, isto é, se como o ser amado se tornou uma fantasia para mim, eu me tornaria uma fantasia para ele, aumentando o poder do outro sobre o meu eu. Assim eu me tornaria também o regulador da insatisfação do outro, fazendo assim, os laços amorosos seriam potencializados e o desejo pelo outro estaria sujeito ao amor à pessoa viva e a sua imagem fantasiosa em meu inconsciente, p. 42.
            O eleito simbólico é uma figura recalcada, diz o autor, isto é, uma duplicação do ser amado no meu inconsciente, p. 46. Há uma reflexão da minha imagem na imagem do eleito no meu inconsciente e isto só ocorre se o meu ser amado possuir um corpo real e vivo. Quando a nossa própria imagem prevalece temos um amor narcísico, mas quando é a do outro cria-se uma dependência do outro. Há, ainda, uma espécie de fragmentação das imagens do outro que está em mim e a minha própria imagem, dessa forma, a minha imagem está misturada com a imagem do ser amado, p. 47.
            De volta a questão da dor, notamos que ela aparece quando existe uma ameaça de perder o eleito da fantasia, o amado, p. 49. A dor não é pela perda do amado, mas pelo que ele representava dentro do inconsciente, ou seja, sem a imagem do eleito só existe desprazer e não há descarga de tensão e assim a ruptura com a fantasia que já não tem mais o corpo de apoio provoca a dor do desligamento do eleito. Essa dor, com o passa dos meses, se reduz por conta da diminuição da imagem do amado desaparecido, p. 50. Sendo assim, a dor psíquica é a dor da perda de si mesmo projetada no amado o que provoca uma desordem pulsional, p. 52. O próprio analista torna-se um outro simbólico para o paciente a fim de ajudar no ajuste da desordem pulsional. Mas a dor psíquica pode ser dividida em duas: quando o amado está enfermo e morre e quando morre subitamente... diz o autor que o segundo sofrimento recebe a denominação de verdadeira dor, p. 53.
A dor pode se sentida fisicamente como algo que desagrega e aniquila. Sua manifestação mais primitiva é através do grito e da palavra, não há dor sem o eu, mas ela está no isso, p. 53.  Ampliando os conceitos de Eu e Isso recorremos ao DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE, TRAD: Vera Ribeiro ( psicanalista ) e destacamos o seguinte: “o eu representa o que podemos denominar de razão e bom senso, em oposição ao isso, que tem por conteúdo as paixões.”
            A dor inconsciente faz o paciente sofrer sem saber por que, a exemplo disso, temos um alcoólatra que sente a dor da sede compulsiva, mas ignora sua origem. Ao embriagar-se tenta neutralizar os distúrbios internos, isto é, o eu é sabotado pela pelo efeito neutralizante do álcool que causa esquecimento e as turbulências pulsionais não são transformadas em emoção dolorosa. Mas os traumas psíquicos podem ser gerados por um forte trauma ou pequenos traumas que se acumulam no inconsciente. Este acúmulo inofensivo pode ser deflagrado um dia por um trauma inofensivo, mas capaz de produzir uma grande dor que nem o paciente sabe de onde vem, p. 59.
            A pessoa do amado é no exterior, diz o autor, o que o recalcamento é no interior; representa o limite contra um gozo perigoso, mas inalcançável. A insatisfação tolerável é garantida, porém não nos impede de sonhar. Com a morte do outro morre-se o limite representativo e o luto ajuda a reconstruir um limite novo, p. 60. Novas fantasias são impedidas de serem realizadas em função dos laços realizados com o primeiro amor, tais fantasias são denominadas pelo autor de fantasias invasoras ou exclusivas. Não podemos esquecer que o eleito pode ser amado ou odiado, dessa forma o laço de fantasia pode ser negativo. No luto patológico diz o autor: “A pessoa enlutada continua a fantasiar o seu eleito morto como se ele estivesse vivo”, p.  61. A dor da ruptura do laço depende da interpretação do abandonado, mas se há dúvida da volta do amado, tem-se uma angustia. A dor ou o amor vai depender da presença do amado, porém vale lembrar que quando o luto encerra pode-se surgir outro eleito que fará a substituição do antigo amor, ainda que outrora eleito como insubstituível, p.62.
            O amor pode ser cego ou resignado. Sendo assim uma pessoa pode não admitir a perda do amado ou aceita-la normalmente fazendo o luto de forma adequada, dessa forma, aceitando serenamente a realidade da pessoa falecida. Isto se dá porque o eu desinveste lentamente da
representação do eleito amado que já não existe mais, p. 63. A dor da perda do amado  provoca abatimento, grito e lágrima, mas não há desejo de parar de sentir a dor, pois a dor é uma homenagem ao amado que partiu, portanto precisa ser suportada; não é masoquismo, é prova de amor. É o tipo de dor que não deseja consolo, mas necessidade de ser descarregada, gozada. Como já fora mencionado pelo autor, a angustia está relacionada a possibilidade de perda, diferente da dor que é perder realmente o amado, eleito pela fantasia. Sendo assim, é necessário salientar que Dr. Nasio apresenta três formas de angustias:
A angústia diante da ameaça de perder o ser amado, a angústia diante da ameaça de perder o órgão amado (angústia de castração), e a angústia diante da ameaça de perder o amor do nosso amado, à guisa de castigo por um erro real ou imaginário que eu assumo (angústia moral ou culpa). 65

            Há de se admitir o fenômeno doloroso que se transmite através do viés do sistema nervoso e suas consequências psicológicas e sociais. Mas a dor conhecida como ‘psicogênica’  é exclusivamente psíquica, ou seja, sem causa aparente, p. 69. Dr. Nasio coloca em questão as duas visões a respeito da dor, a saber: ‘uma experiência sensorial e emocional desagradável, associada a uma lesão tissular real ou potencial, ou ainda descrita em termos que evocam essa lesão’. Mais do que uma sensação, diz ele, a dor  é emoção que pode nascer sem lesão. E ressalta a necessidade da pesquisa psicanalítica para situar adequadamente o psiquismo como origem da dor também, e afirma ainda: “Assim sendo, se desejamos saber por que nossos pacientes sofrem e por que nós mesmos sofremos, é preciso tomar a lente da metapsicologia e descer até o centro do eu, para descobrir a psicogênese da dor, p. 70”.
A dor causada por uma lesão é percebida no nível do traumatismo e  pela comoção gerada. Toda lesão será percebida pelo eu como uma agressão periférica externa “ruptura fronteiriça”. Mas no caso de uma lesão grave o eu não percebe perifericamente, pois todo o ser está transtornado, p. 72. Quando há um ferimento real percebido na periferia do corpo, ocorre também uma formação da imagem do local lesado que fixada na consciência que o autor denominou de ‘ representação do local lesado e dolorido do corpo’. A percepção é que a dor é periférica e está concentrada na região lesionada, p.73. Neste momento o Dr. Nasio faz uma revelação surpreendente ao dizer que a dor (queimadura) não está no ferimento, mas no cérebro e nos alicerces do eu. Mas já que a percepção é de que a dor emana do ferimento, este se revela como segundo corpo. Contudo para que a dor se torne comoção é necessário que a estimulação seja muito forte para ir além da excitação sensorial e realizar um trauma interno, isto é, “somato-pulsional” e não apenas “somato-sensorial”, p. 74.
[...] a dor da lesão comporta três aspectos: real, simbólico e imaginário.  Real: percepção somato-sensorial de uma excitação violenta que afeta os tecidos orgânicos.  Simbólico: formação súbita de uma representação mental e consciente do local do corpo onde a lesão se produziu.  Imaginário: como o corpo é vivido na periferia, toda lesão será vivida como periférica, p. 74.
 [...] Diremos então que o calor da chama que atacou a pele se transformou imediatamente em uma corrente de energia interna, devastadora e não controlada, que mergulha o eu em um estado de choque traumático. Pela brecha aberta na barreira de proteção irrompe, no seio do eu, um afluxo súbito e maciço de energia, que submerge não o corpo, mas o psiquismo no seu próprio núcleo (neurônios da lembrança). Com isso, a homeostase do sistema psíquico é rompida e o seu princípio regulador — o princípio de prazer — encontra-se momentaneamente abolido (Fig. 2). É então que o eu, embora transtornado, consegue autoperceber o seu próprio transtorno, isto é, a perturbação das suas tensões pulsionais. Essa singular autopercepção pelo eu do seu estado de comoção interna — percepção somato-pulsional — cria a emoção dolorosa, p. 75.

Quando a percepção somato-pulsional é tão forte que fica gravada como uma  imagem na memória e no inconsciente, este não o  reflete na superfície da consciência. A dor da comoção fica gravada no inconsciente, mas retorna na carne, convertida em dor real, lesão psicossomática; ou na consciência como outro afeto, tão opressor quanto à culpa.  O sujeito repete a experiência passada de uma dor violenta como a queimadura, mas a dor pode reaparecer representada em uma nova sensação, uma lesão psicossomática, um afeto ou uma ação penosa, p. 77. A experiência dolorosa se grava no psiquismo e reaparece no inconsciente. Menciona o autor que Freud imaginava que o eu era composto de dois elementos essenciais: ‘energia’ e ‘neurônios’. Uma parte da energia vem do exterior e outra do interior intra e interneuronal. Os neurônios eram subdivididos em três grupos: na periferia do eu, no centro do eu-‘neurônios da lembrança’ e conjunto neuronal que opera uma função de percepção voltada para o interior, p. 78. Já os neurônios perceptivos detectam as variações da tensão psíquica e as repercuti na consciência. O ritmo do fluxo energético é sincrônico, agradáveis, mas se assincrônicos e dolorosos, desagradáveis. A ficção do eu imaginada por Freud continua sendo a matriz da vida psíquica. Contudo a passagem violenta do fluxo energético acarreta duas consequências: imagem mnêmica e uma excitabilidade aumentada do conjunto neuronal. Dessa forma, a imagem que ficará gravada no neurônio é a da agressão ou do objeto agressor, p.79. O neurônio que conserva essa imagem fica irritável e pronto para reagir a uma excitação que pode levá-lo a descarregar sua energia sob a forma de nova dor, de uma lesão, uma ação ou um afeto. O autor menciona novamente Freud que propôs o termo de ‘trilhamento’ para esse fenômeno. Quando a energia sensibiliza os neurônios, bastam   fracas excitações para reativá-los e reanimar as suas imagens; mesmo que essas excitações sejam mais imperceptíveis e de fraca intensidade, podendo ser externas ou internas. Contudo a imagem mnêmica da agressão é reativada podendo fazer aparecer  uma nova dor situada em um ponto do corpo diferente do que foi afetado, dessa forma o sujeito experimentará uma sensação dolorosa inexplicável, p. 80.
Quando um médico recebe um paciente, diz o Dr. Nasio, com uma dor sem uma causa específica normalmente não faz associação psicológica e provavelmente prescreverá um ansiolítico. Mas ressalta o auto que no corpo são projetadas as lembranças e o sofrimento atual somático. Um psicanalista, por sua vez, convidaria o sofredor a falar dos seus traumas físicos ou psíquicos, isto porque o afluxo de energia dolorosa poderia ter afetado outros neurônios na época do trauma, constituindo um erro que poderia ter ficado gravado em um neurônio da lembrança. Se a dor corporal foi violenta, o neurônio da lembrança do erro será trilhado, com isto, uma fraca estimulação despertará um sentimento de culpa inexplicável. Essa sensibilidade trilhada pode gerar um afeto opressivo, provocar uma lesão tissular ou ainda despertar uma compulsão dependendo da imagem mnêmica, p. 81.
             Quanto ao sofrimento individual, experiência única, proveniente da dor do corpo ou do espírito, se misturará a uma mais antiga que habita no eu. Minha dor está ligada a outra do passado.  Segundo Freud, cita o autor, a emoção não é o que sentimos agora, mas também a repetição do sentimento experimentado outrora. Um afeto é a volta atenuada do abalo intenso. O sentimento de hoje, agradável ou desagradável, resgata emoção arcaica, com isto, não existe afeto novo, pois ele é sempre fruto de uma repetição. Dessa forma a gênese do afeto é o despertar de um afeto passado, por isto, não existe afeto puro, até porque, ele é sempre reativado por uma fantasia. E, como enuncia Lacan, um significante é sempre a repetição de outro significante; por fim, só existe afeto repetido, p. 83. A dor inconsciente é a memória do antigo sofrimento; ela não é a dor do momento, mas um conceito amplo que começa com um forte sofrimento do corpo oriundo da agressão externa e despertado por uma ligeira excitação, geralmente interna, p. 84. A dor inconsciente, diferente de uma lembrança consciente, é a memória inconsciente da dor. A emoção dolorosa é a união da sensação desagradável de hoje e a primeira dor. Uma dor é humana porque é memória inconsciente. O afeto doloroso volta a dar vida à antiga dor de um traumatismo. O psiquismo, por sua vez, forma a representação do corpo lesado “eu-consciência” que sofre o impacto da comoção “eutranstornado” que autopercebe o transtorno que ela acarreta “eu-órgão endoperceptor” que registra e restitui esse impacto “eu-memória inconsciente”, p. 85.
 Além de sofre um “mal”, o eu sofre a dor de protestar contra ele. Esforça-se para se defender contra esse transtorno. A dor física é um esforço de defesa tentando curar-se sozinho, “auto curativo”. O eu desloca  para o  ferimento  toda  a  energia  a fim  de  “fechar  a
brecha e deter o fluxo maciço de excitações”, chamado por Freud, conforme Dr. Nasio, “ contrainvestimento” ou “ contracarga” - que se opõe a brutalidade da excitação, p. 86. O corpo ferido é tratado pelo eu que ocupa-se, também, da representação da lesão. Com isto, privados da integridade corpo ou do objeto, produz-se um excesso de investimento afetivo da imagem local ou um excesso de investimento afetivo da imagem do objeto. Esse excesso é a dor. A imagem superinvestida psiquicamente chama-se ‘superinvestimento narcísico’ e o da imagem (o ser amado) chama-se ‘superinvestimento do objeto’, p. 87. Para resistir à comoção, isto é, a emoção forte e repentina, o eu se lança sobre o símbolo do local e a ele se prende. A dor é o esforço do eu para se livrar da comoção, por isto, se lança sobre o símbolo. Há uma destruição da união psíquica, dessa forma o eu funciona desestabilizado pelo isolamento, p. 89.
O autor relata, ainda, que a imagem do local doloroso corresponde a uma “anatomia fantasística” e nenhuma imagem da região corporal oferece o reflexo do corpo, pois as percepções da realidade estão deformadas. Por conta disso, temos o local do corpo atingido pela lesão, inserido na cena fantasiada de um sonho e associado à ação de um ser irreal. A representação do local dolorido é impressão do passado e presente, nascida com a lesão e com destino de concentrar “o fluxo descontrolado de energia”, isto é, a imagem incerta de um fragmento do corpo no “centro da cena fantasiada”, p. 92. Desta feita, o eu, diz o autor, visualiza a região dolorida (interna ou externa) do seu corpo. A dor corporal é o afeto experimentado pelo eu quando ferido, comocionando ou relembrando uma dor antiga, fazendo um esforço de superinvestimento da imagem, suavizando a comoção, mas acentuando a dor, pois o estado de comoção dói, e a defesa contra a comoção dói mais, p. 93.
A ciência deve prolongar a tese do superinvestimento da imagem mental da região dolorida, acredita o autor, e essa tese freudiana se tornará um conceito-chave nas futuras pesquisas da neurofísica da dor. Os neurologistas explicam que memória é uma “estocagem de imagens nos neurônios”. Já os neurocientistas formulam hipóteses próximas dos primeiros desenvolvimentos de Freud sobre a memória veiculada pelas células chamadas ‘neurônios da lembrança’. Jean-Pierre Changeux, menciona Dr. Nasio, supõe existir imagens mentais estocadas nos neurônios- ‘objetos mentais’, enquanto Damasio, considera que as imagens mentais, ao invés de serem estocadas nas células, se elaboram a partir de uma ‘proto-imagem- representação potencial’, p. 95. Na visão psicanalítica, ressalta o autor, a dor é a ativação da  “representação potencial”, não sendo a lembrança, mas o meio de formá-la. São os neurônios

da lembrança que conservam a imagem do objeto agressor. Sua reativação provoca uma dor semelhante a inicial.
[...] sabemos atualmente que a sensação dolorosa resulta, entre outros fatores, da mediação de uma proteína chamada substância P (Pain, que significa “ dor” ). A mensagem nociceptiva é transmitida quando o axônio de um neurônio secreta o neurotransmissor P, que entra em contato com os receptores localizados na dendrite de um outro neurônio, p. 96.

Os neurônios estimulados por fracas excitações internas, liberariam a substância geradora de dor que excitaria os neurônios da lembrança, reanimaria a imagem do objeto hostil e despertaria a dor antiga, p. 96.
Os ‘neurônios retentores’ ou ‘células da lembrança’ são os neurônios da memória, isto é, têm por função arquivar a ‘ foto’ deixada pelo agente que provocou a excitação- “foto do objeto hostil na dor, foto do objeto de amor no prazer”, p. 97.
Os outros neurônios- ‘células de percepção’, tratam a excitação, mas ao contrário dos neurônios da lembrança, deixam-se atravessar pelo fluxo de excitação, sem guardar nenhum vestígio. R. Llinàs define a consciência como uma relação harmoniosa entre o ritmo dos neurônios oscilantes do tálamo e o dos neurônios do córtex cerebral. Ressalta o autor que Freud manifesta apenas timidamente interesse pelo ritmo, mas define-se todo afeto como a expressão na consciência das variações ritmadas das pulsões, logo a “dor é muito diferente do prazer e do desprazer” porque ela exprime não um ritmo pulsional particular, mas a ruptura violenta desse ritmo, p. 98.
Assim, os sentimentos de prazer e de desprazer não seriam a expressão do nível de intensidade das pulsões (prazer = baixa intensidade; desprazer = alta intensidade), mas antes a expressão das oscilações de tensão, da alternância dos picos e das quedas da tensão ao longo de uma duração definida, p. 98.

A ruptura da cadência pulsional referida pelo autor corresponde à perturbação das tensões, pondo em xeque “o princípio de prazer/desprazer”, provocando a cessação brusca do equilíbrio do sistema econômico do eu. Freud estudando os neurônios de percepção diferenciava dois tipos particulares: os que percebem as excitações vindas da periferia do corpo e os que captam as oscilações de tensão interna, p. 99. “A dor é um afeto sentido conscientemente”, ressalta o autor, dessa forma, o  eu desacelera o movimento energético e isso graças a uma grade disposta de tal maneira que um neurônio demasiado investido de energia tenha a possibilidade de fazer derivar uma parte da sua carga para neurônios laterais. O sistema dos neurônios do eu se torna um órgão inibidor, p. 100. Então, o Dr. Nasio diz ainda que o papel da inibição é determinante, pois preserva o eu de um “transbordamento de excitação” que ameaçaria a sua integridade. “O afeto doloroso rompe todas as barreiras internas, mas sem destruir o eu”. Damasio faz a diferença entre dois componentes na percepção da dor: uma percepção “somato-sensorial” e uma percepção de uma perturbação global do corpo. Cita o autor que é a percepção de uma perturbação global que corresponde à emoção dolorosa. Reforça que o cérebro formaria duas imagens da dor: “uma imagem somato-sensorial e uma imagem emotiva”. De acordo com ele, o eu é um conceito do pensamento científico e com papel de um terceiro, espécie de ‘meta-eu’, que sintetizaria e  ajustaria essas duas imagens, p. 101.
O Dr. Nasio estabelece a diferença entre ele e Damasio através de uma réplica: ‘o cérebro percebe o estado perturbado do corpo, e daí surge a emoção dolorosa’ diria Damasio e ele responderia ‘o eu transtornado autopercebe o transtorno pulsional, e daí emana a dor’, p. 102.
Uma algia psicogênica pode ser comprovada pela pressuposição de que um corpo é dotado de memória. Outra hipótese de uma origem psíquica se baseia na teoria freudiana, que considera a conversão histérica como o “salto do psíquico para o somático”. Uma pulsão recalcada salta do campo do inconsciente para o do corpo e se transforma em dor somática, p. 103. Com isto ela vai se localizar justamente na parte do corpo atingida outrora, quando de um uma agressão. Uma pulsão incestuosa pode aflorar à consciência como sentimento de vergonha. A dor volta para o inconsciente, levando a imagem da parte do corpo, ou mais exatamente “a imagem tátil do contato sensual” entre a pele e o objeto do desejo incestuoso. Mais tarde, a pulsão reapareceu sob a forma de contraturas dolorosas localizadas no mesmo lugar onde o objeto do desejo incestuoso tocara. A sensação erógena e culpada de um dia se tornou, posteriormente, sensação dolorosa sem razão aparente. Ao passo que essa segunda origem da dor psicogênica — a conversão histérica — se explica pela transformação de uma pulsão em dor imotivada, esta causa psíquica se refere a um outro modo de relações entre pulsão e corpo. 104
Relata o autor que uma pulsão recalcada pode se converter em corpo que sofre porque a pessoa fora lesada outrora, ‘marcada’ por uma antiga dor orgânica insignificante. Daremos a esse terceiro mecanismo o nome de “marca somática sobre a pulsão”, p. 105.
Na conversão histérica está contida a fórmula freudiana do ‘salto enigmático do psíquico para o somático’, isto é, da pulsão para o corpo; a terceira causa da dor psicogênica está contida em uma fórmula mais ampla: do somático para o psíquico, depois do psíquico para o somático. A dor psicogênica pode aparecer onde havia uma antiga dor- lembrança, ou então, aparecer no lugar marcado outrora por uma pulsão, ou ainda, no local em que a pulsão fora marcada por uma velha dor. Em um incidente real, o objeto agressor provocou uma dor muito intensa chamada “dor da comoção”. Com isto, uma representação psíquica inconsciente memoriza os sinais agressores sob a forma ‘foto’, imagem mnêmica, p.106. A dor da comoção, de acordo com o autor, deixou dois sinais: a foto do agressor e a excitabilidade dessa foto. Quando a imagem é reavivada uma descarga faz surgir nova dor. A reativação da imagem mnêmica dá lugar a uma segunda dor ou a outras manifestações na vida cotidiana do sujeito: “sonhos, comportamentos inexplicados ou estados afetivos particulares”, p. 107.
Por conseguinte, chamamos dor inconsciente ao conjunto do processo ignorado pelo sujeito que começou com uma dor traumática e culminou com o vivido atual de uma experiência penosa. A dor inconsciente é finalmente o nome que damos a um circuito, impresso por uma dor sentida, reativado por uma excitação ocasional e manifestado enfim por uma outra dor sentida [..] em si mesma a dor inconsciente não é “ uma sensação sem consciência” pura, simples e desconhecida, como diria Maine de Biran, mas um encadeamento desconhecido de acontecimentos, que resulta na dor que eu vivo hoje [...] a dor inconsciente só existe depois do aparecimento da dor de hoje [...], p.108.

Todas as dores, diz o autor, estão relacionadas com a histeria. De acordo com mecanismo de conversão histérica a dor orgânica é parcialmente. O surgimento de uma dor corporal faz aparecer às vezes a eclosão de uma histeria, às vezes a de uma psicose.  Com a representação psíquica continuando no seio do sistema, a dor corporal se explicaria por um mecanismo de conversão aparentado com o da histeria. A dor seria então o “duplo somático de um elemento simbólico’, ou seja, a expressão somática da imagem do corpo lesado, p. 109”. Sendo assim, a parte psíquica está submetida a todas as regras da conversão histérica no caso da origem da dor orgânica, p. 110. Porém, na página 113 o autor assegura que a dor é uma das figuras mais exemplares do gozo, não no sentido de prazer sexual, mas entendido como a tensão máxima suportada pelo psiquismo. Assim, a “dor é o último grau de um gozo no limite do tolerável”.
A dor, levando em consideração a excitação traumática, relembra o autor, não responde aos critérios de prazer e desprazer, mas é um afeto penoso e desagradável, contudo é muito diferente do desprazer, isto significa a exclusão do “princípio de prazer/desprazer regulador do funcionamento do nosso psiquismo”. Reforça, ainda, que quando há dor, estamos “além do princípio de prazer”, p.116. Neste momento o autor faz um questionamento: ‘Como uma dor pode ocasionar uma satisfação sexual?’ E cita o que na sua ótica seria a resposta de Freud “ uma excitação sexual se apoia e nasce a partir de uma excitação corporal”, mas ele mesmo relata que tal resposta não é suficiente. Dessa forma, ele mesmo reponde “ poderíamos dizer que a excitação sexual se apoia sobre uma sensação dolorosa”. Sua argumentação está subtendida na ideia de que todo prazer sexual é um prazer perverso e está muito próximo da vida fisiológica do corpo, p. 117. Na tentativa de melhorar a origem da sexualidade, o Dr. Nasio lança mão dos argumentos Lacanianos e relata que tudo fica mais fácil de entender por causa da invenção do “estádio do espelho”. Nesta perspectiva fala-se de uma discordância, afastamento básico entre um corpo prematuro e a imagem antecipadora desse mesmo corpo já maduro. A sexualidade nasce ali, diz ele, na discordância entre nosso corpo insuficiente e um imaginário, “demasiado antecipador de uma maturidade que nunca será verdadeiramente atingida”. O afastamento entre esses dois planos gera o  nascimento da libido, gênese da sexualidade. A matriz completa é uma discordância, não entre um corpo prematuro e uma imagem, não entre um corpo que falha e uma imagem antecipadora, reforça o autor,  mas “entre o desejo da criança e o da sua mãe”, p. 118.
É nessa discordância vivida pela criança entre a impotência do seu desejo e a inacessibilidade do desejo do Outro que se situa, na etapa fálica, no momento do complexo de Édipo, o nascimento da sexualidade. Vamos mudar os termos, e ao invés de dizer “ nascimento da sexualidade” , digamos “ aparecimento do falo como significante” . A partir desse desacordo básico entre um desejo insuficiente, prematuro — o da criança — e o desejo intolerável e impossível da mãe, surgirá o falo como significante que vem marcar todas as dissimetrias entre impotência e impossibilidade, ou entre a prematuridade e o logro imaginário
de um Todo possível, p. 118.

 A teoria analítica afirma que todos os objetos, diz Dr. Nasio, são caracterizados como objetos de pulsão semelhante ao  falo; “o seio como objeto da pulsão oral, o olhar como objeto da pulsão escópica, a voz como objeto da pulsão invocadora, e as fezes como objeto da pulsão anal”. Da mesma forma nasce a dor.  Na época edipiana o pênis é um objeto ameaçado. É uma ameaça de castração e não perda ou uma mutilação. Surge então uma angústia e a criança encontra uma saída  humanizada: “inventar um significante”, p. 119.
[...] Não haverá um seio significante, nem uma voz significante, nem ainda fezes significantes, pela simples razão de que nenhum desses objetos se destaca sob o domínio da ameaça e da angústia [...] O objeto da pulsão, tal como a chupeta ou até o mamilo materno, é pois um objeto descartável: uma vez utilizado por nossos desejos, nós o deixamos cair e tratamos de outra coisa, de outro objeto. É o que Lacan teria chamado a “ queda do objeto a”. p. 119.

 O eu é uma projeção mental. A representação superinvestida narcisicamente é uma imagem mental. O superinvestimento do representante psíquico do local ferido pode se compreender como uma superexcitação equivalente ao prazer sexual perverso ‘apoiado’ sobre uma função fisiológica. Freud, diz o autor, escreveu: “Conhecemos o modelo de um órgão dolorosamente sensível, sem contudo estar doente no sentido habitual: é o órgão genital em estado de excitação [...]”, p. 121. A dor é sempre sofrida pelo eu, diz Dr. Nasio, seja porque o eu a sofre ou porque se identifica com o sofredor, dessa forma, conclui-se que “o gozo sexual, no âmbito da pulsão sadomasoquista, é sempre um gozo fundamentalmente masoquista”. O autor na sua experiência confessa que os verdadeiros perversos só consultam o analista em certos momentos de abatimento, com isto,  é  percebida a dificuldade de experiência clínica com eles. Mas na perspectiva sadomasoquista, a dor só aparece quando o eu se identifica com o outro que sofre o mal e, além disso, o eu se identifica com aquele que provoca o mal; o eu se identifica com o outro masoquista e sádico; logo que assume os dois papéis, ele instala no  seu psiquismo os personagens da fantasia sadomasoquista: “um supereu sádico e um eu sempre masoquista”, p. 126.
O autor volta a falar sobre furo, isto é, o vazio ou furo habitado pelo sujeito, seja uma dor real ou fantasística, permanece no inconsciente como as ‘fantasias originárias’. “A dor é a parte sacrificada para evitar sofrer”, nesta visão, citamos o site <psicologiaejuventude.blogspot.com.br/2011/07/automutilacao-forma-dolorosa-de-alar.html> acessado dia 28/07/2015 as 12:12, que faz menção à “Introdução à leitura do Seminário da angústia de Jacques Lacan” que explica muito bem a questão da dor que alivia o sofrimento, como segue abaixo:
Se reportarmos às designações em  inglês,  o  termo  cutter  pode  ser  traduzido  como “cortador”,  ou  “pessoa  que  se corta”.  Resta interrogar que o que o “cortador” corta? Talvez o “cortador” corte a dor. Assim, automutilar-se seria uma tentativa de diminuir a dor, torná-la reduzida, aliviada. Ocorre que diante do flagelo, o cérebro produz endorfinas para aliviar a dor do corpo e esse alívio é sentido pelo sujeito como um alívio da ansiedade. Logo, para cada pico de ansiedade o sujeito recorre ao corte para sentir o alívio produzido pelo cérebro, tornando a automutilação com isso, um ciclo vicioso. O início do quadro ocorre na adolescência, geralmente entre 13 e 15 anos, num momento em que o jovem vivencia intensa raiva ou angústia, e pode perdurar por muitos anos, pois a pessoa sente-se incapaz de parar com tal prática.                                                   

A dor, de acordo com Dr. Nasio, “evita confrontar-se com o gozo extremo e intolerável”, ainda que o gozo seja uma ameaça não realizável. Então a figura que mais se representa no neurótico apresenta fantasia masoquista de flagelação; um Outro perverso, que exorta a gozar e a sofrer, a gozar com o sofrimento. ‘Goza” , grita o supereu perverso. ‘Goza de tudo, mais-além da tua dor e da tua própria vida. Experimenta a morte conservando a tua vida!’, com isto,  a própria dor obstrui o gozo do Outro, gozo que se dar com dor na carne mortificada, “para não sofrer o louco gozo que a morte significaria”.  Acalma-se a vontade perversa do outro com sofrimento da dor que chicoteia. Enfim, para a psicanálise, “a dor é um estranho alívio”, reafirmando a assertiva de que a dor é sofrimento para escapar ao sofrimento. “Um sofrimento parcial, inserido em uma fantasia, para escapar a um sofrimento desmedido e perigoso”. Na realidade, essa dor satisfaz uma forte necessidade de punição, autoflagelo, p. 131.
Cita o autor que a libido deixa parcialmente a representação de objeto e passa a se transformar em ‘percepção consciente’, dessa forma, a representação torna-se percepção. Quando esta representação é investida libidinalmente, temos uma “percepção endógena, endopsíquica.” A representação de objeto, fantasia de desejo ou percepção endógena, seriam a mesma coisa. Com isto, a percepção endógena (representação) é desembaraçada do seu investimento e se torna percepção de um objeto exterior. No caso específico de paranóia, a libido deixa parcialmente a representação de objeto e volta para o eu e investe fortemente a sua superfície perceptiva, consciência. É interessante que a alucinação e o delírio só surjam e só se constituam, diz Nasio, depois do salto da libido porque ela deixa a fantasia para investir exclusivamente a consciência, p. 136.
[...] Porque todos os fenômenos clínicos em que a pulsão parece enlouquecida, como o suicídio, o delírio, a alucinação, a passagem ao ato, o acting-out, ou ainda a reação terapêutica negativa, são formações psíquicas que se bastam a si mesmas e não remetem a nada mais [...]  Classificarei a reação terapêutica negativa na mesma categoria que uma alucinação, um delírio ou uma passagem ao ato. Porque, de fato, estas últimas formações são mais que exemplos clínicos; elas constituem formações psíquicas que não remetem a nada além de si mesmas, e que consistem nisto: o objeto dor, para retomar a reação terapêutica negativa, não é apenas um objeto pulsional e fantasístico [...] a fantasia masoquista se desinvestiu e reapareceu no exterior, transformada em realidade percebida como exterior. A culpa e a dor inconscientes apareceriam assim sob uma forma exterior e disfarçada. A reação terapêutica negativa seria pois o simulacro sensível desses dois afetos inconscientes, p. 137.

Então o autor se refere a uma máscara usada pela dor diferenciando a formações clínicas patológicas expressadas pelo grito e pelas lágrimas. Esta explicação se dá pela apresentação do grito e das lágrimas como “semblantes perfeitos, mais solidários desse objeto que é a dor inconsciente”, p. 137.
O autor nesta página faz elaborações riquíssimas ao descrever o gozo do Outro como um sofrimento vivido pelo sujeito, indicando-o como um perigo e ressaltando que a simples ideia de gozar demasiadamente dá muito medo.  Relembra que a dor é sofrimento que atua na fantasia, e esta simboliza o “gozo/sofrimento inacessível”. Relatando esse paralelo, levanta três problemas: O primeiro problema é o do masoquismo que é uma posição de onde o sujeito mantém certa relação com a satisfação sexual. O ‘sexual’ não significa ‘genital’, diz ele, mas um prazer diferente do oferecido pela satisfação de uma necessidade. Dessa forma, fala da satisfação do sujeito em substituir o objeto gozado pelo Outro, perverso superegóico; agindo a dupla face do supereu, por um lado, como sádico, por outro, como senhor que comanda. Quando o sujeito toma o lugar do objeto, na fantasia, sendo voz, olhar, dor ou seio, adota posição masoquista. Toda fantasia, conclui Nasio, se forma graças a essa identificação com o objeto e toda fantasia é basicamente masoquista. O segundo problema, continua Nasio, é a zona erógena. Cita que Freud, nos Três ensaios sobre a teoria sexual, propõe situar a zona erógena no nível da pele, mas o próprio Dr. Nasio defende a ideia de não apenas na pele, mas nos músculos, na tonicidade muscular, à medida que “o bater” é prazeroso, isto é, flagelar o Outro e espancá-lo. “Mas, excetuando-se as duas zonas erógenas — pele e músculos — que especificam a dor, outro aspecto singulariza mais o masoquismo; são os gritos e as lágrimas. O grito, como dissemos, seria o semblante mais íntimo do objeto dor”, p. 138.
Quanto ao terceiro problema o Dr. Nasio relembra que pulsão e fantasia não são perversão e a perversão não é a fantasia. Acredita-se que a perversão só existe com a condição de que haja o Outro.  Neste momento ele revela que ao contrário do que se pensa, o outro, no cenário do ato perverso, só é porque tem forma, isto é, quando provido de um corpo e  porque “encarna uma silhueta que pode ser deslocada no espaço, e sobre a qual se podem praticar manipulações”. O mundo perverso, afirma o autor, é um mundo sem outrem, isto é, o outrem se reduz ao papel de figurante sem alma; a perversão é o universo em que domina a repetição. Com isto, fala-se também do masoquista, não como um coitado na mão do perverso, mas como aquele que toma o lugar do objeto na fantasia do outro sendo um senhor que idealiza formas de dor.
Compreendemos agora por que o masoquista não é propriamente um escravo, mas um senhor, um senhor que fabrica formas e semblantes da dor. O perverso é o mestre do semblante; ele discerne e destaca o semblante, o fetichiza e se apropria dele [...] p. 139.

O grito é capaz de despertar a dor, produzi-la. A exemplo da campainha de Pavlov capaz por si só de despertar a fome e fazer o cão salivar, o grito é igualmente capaz de despertar a dor, assim como o medo de ver reaparecer a causa da agressão. Podendo ser memória, excitação da sensação dolorosa, mas sem agressor, uma sensação alucinada. Ele reflete, refrata e depois desencadeia a dor. Afirma o autor que a relação entre o grito e a dor alucinada fundamenta o significante e o afeto. A definição psicanalítica do afeto retoma a concepção darwiniana. O afeto “é uma repetição, a repetição de um acontecimento traumático muito antigo o afeto vivido hoje é a reminiscência de uma experiência passada, mais exatamente o símbolo de um trauma originário. O afeto é pois um símbolo, ou melhor, um significante”, Freud inspirado por Darwin, p. 149.
Encontramos neste trecho o autor apresentando dois termos usados por Freud: ‘ válvula’ e ‘bomba aspirante’ ilustrando a força que aspira e esvazia toda a libido. A posição que o analista pode adotar diante da dor e do grito dos seus pacientes é formular as perguntas corretas. Não importa ler mil textos se não fizer o mais importante que é fazer a pergunta correta. A relação da teoria com a prática, diz o autor, passa por perguntas. O “savoir-faire”, isto é “Saber Fazer” do analista é o saber interrogar-se. Para formações psíquicas como a dor e o grito, a reflexão e as perguntas não bastam; é preciso mais, isto é  ‘fazer as trevas para iluminar o ponto obscuro’, “polarizar- se sobre o ponto mais opaco, e então ver, isto é visualizar o real, quase aluciná-lo”, p. 155.
Nas palavras de Freud: ‘O luto é a perda, a reação à perda de um objeto de amor.’ Não há luto por alguém que não tem um peso significativo em nossa vida, mas por alguém que amamos fortemente: ‘objeto eleito pela escolha narcísica’. “O objeto mais narcísico, aquele pelo qual temos de nos enlutar, é o pênis”. Neste particular o autor fala da necessidade de ler ‘Luto e melancolia’  e um artigo intitulado ‘O declínio do complexo de Édipo. O falo é objeto fálico imaginário de uma castração. O pênis do menino é perdido, ou seja, a criança neutraliza o seu órgão e o eleva à dignidade de significante, isto é, põe palavras no lugar do pênis, por não poder dormir com a mãe, e ela declara seu amor. A segunda perda, ao invés de suscitar significantes, ao invés de simbolizar, a criança se põe no lugar do objeto, isto é, identifica-se com o órgão peniano. “[...] dessa identificação que nascerá o objeto fálico imaginário”, p. 161.
Na observação do “Luto e melancolia”, pensa-se que a tarefa maior que o eu deve cumprir durante o luto é se desligar das lembranças do morto, isto é, desinvestir. Mas se há dor, é por causa da separação gerada no deslocamento dos investimentos que deixam a representação de objeto para difundir-se no eu como investimentos narcísicos. Enfim, o autor constatou que a dor não é imediatamente ligada à perda, mas ao trabalho do luto, entendendo-se que a palavra ‘luto’ significa não ‘perda’, mas reação à perda. Freud, diz o autor, escreveu: ‘A dor corporal supõe um superinvestimento da representação psíquica do local lesado do corpo. ’ Comparando categorias de dor, física e psíquica, a dor não se deve ao destacamento, mas ao superinvestimento. A representação de objeto é tão superinvestida na dor do luto quanto a representação do local lesado do corpo na dor corporal, p. 165.
 O investimento do objeto como objeto perdido [isto é, da representação do objeto amado e perdido] é tão intenso quanto o da dor corporal [investimento da representação do local lesado do corpo]. p. 165

Então se estabelece um insight, a contraposição de  uma dor violenta provocada por um incidente real e a lembrança do afeto doloroso. A dor do passado, diz ele, fora provocada por agente real e externo ao passo que o afeto é estimulação interna. ‘No caso de uma experiência dolorosa, [a] fonte é evidentemente a quantidade de energia proveniente do exterior; no caso dos afetos [dolorosos], é a quantidade de energia interna liberada pelo trilhamento.’ A antiga dor traumática é reativada por uma antiga dor. Freud a chama de ‘afeto’; e o fenômeno de sensibilização dos neurônios, de ‘trilhamento’. p. 174.
‘[Sendo] dependentes do objeto de amor escolhido, [...] nós nos expomos à mais forte das [dores] se somos desprezados por ele ou se o perdemos por motivo de infidelidade ou de morte.’ Nesta palavras enfatizadas pelo autor percebemos uma grande verdade prática que é a falta de proteção ao sofrimento quando se ama, então ele complementa: “ Perder o amor do amado é também perder o que era o centro organizador do meu psiquismo”. Mas no caso do luto? O luto só ocorre, diz ele, quando há identificação com a mesma fantasia. ‘Quando o objeto [amado e perdido] não tem uma importância tão grande para o eu, reforçada por mil laços, a sua perda também não é capaz de causar um luto.’  Dr. Nasio menciona Lacan no fragmento: ‘Estamos de luto por alguém de quem podemos dizer: [Eu era a sua falta]. Estamos de luto por pessoas que tratamos bem ou mal, e para as quais não sabíamos que cumpríamos a função de estar no lugar da sua falta. Lacan’.  Então Lacan questiona “O que é o luto? O luto é uma retirada do investimento afetivo da representação psíquica do objeto amado e perdido. O luto é um processo de desamor. É um trabalho lento, detalhado e doloroso. Pode durar dias, semanas e até meses. Ou ainda toda uma vida...” p. 184.
“Freud afirma que o bebê sente angústia e dor”. Nesta perspectiva ressalta o autor, o lactante confunde esses dois sentimentos, até porque não faz distinção de uma perda temporária para uma definitiva e, assim , seu sentimento está misturado ( angústia e dor). Na idéia do autor a criança a partir de 2 anos já pode discernir tal sentimento, contudo de acordo com as teorias de Piaget, na fase pré-operatória ( de 2 a 6/7 anos) o lactante não demonstra já possuir tal habilidade e capacidade de discernimento, até porque a criança nesta fase  ainda tem confusão entre fantasia e realidade, o pensamento é pré-lógico, sua orientação é apenas pela percepção, possue falha em julgamento e moral; dessa forma entendemos que tal percepção se dá no período operatório concreto. Enfim, a bem da verdade, “uma situação de perigo é diferente de uma situação traumática, porque o perigo causa angustia e o trauma dor. ‘A situação na qual [a criança] sente a ausência da mãe não é para ela [sendo mal compreendida] uma situação de perigo, mas uma situação traumática, ou mais exatamente, ela é traumática se a criança sente nesse momento uma necessidade que a mãe deve satisfazer.’ p. 188. O Dr. Nasio reporta, ainda, que “O ciúme é a reação a uma suposta perda do amor que meu amado desvia de mim para um rival”, p. 189.
Temos todas as razões para admitir que as sensações de dor, como outras sensações de desprazer, transbordam para o domínio da excitação sexual e provocam um
estado de prazer; é por isso que se pode também consentir no desprazer da dor. Uma vez que sentir dor se tornou um alvo masoquista, o alvo sádico, infligir dores, também pode aparecer, retroativamente: então, provocando essas dores para outros, goza-se de modo masoquista na identificação com o objeto sofredor. Naturalmente, goza-se, em ambos os casos, não com a própria dor, mas com a excitação sexual que a acompanha. Gozar a dor seria pois um alvo originariamente masoquista, mas que só pode tornar-se um alvo pulsional para aquele que é originariamente sádico. p.  190.

O Dr. Nasio reforça a ideia de que o desprazer é desejo, mas não é dor. O masoquismo é o gozo de ser reduzido ao objeto do gozo do Outro. “[...] o cúmulo do gozo masoquista não está tanto no fato de que ele se oferece para suportar ou não esta ou aquela dor corporal, mas nesse extremo singular [...] da fantasmagoria masoquista, essa anulação propriamente dita do sujeito na medida em que ele se faz puro objeto.” p. 192.
O masoquismo, efetivamente, se define precisamente pelo fato de que o sujeito assume uma posição de objeto no sentido acentuado que damos a essa palavra, o de um dejeto ou do resto do advento subjetivo,  p. 193.

Enfim, os sofrimentos da modernidade como fatores causadores do alcoolismo são observados, em particular, quando no século XX a educação foi marcante na preparação de mão-de-obra para o mercado de trabalho. Com o avanço da industrialização e as transformações do mundo do trabalho rumo à denominada “economia do conhecimento”, a permanência dos trabalhadores no mercado de trabalho dependia da sua preparação e adaptação às novas exigências do mercado.
O uso das novas tecnologias de informação e comunicação caracterizam o fenômeno de exclusão dos que não têm acesso às novas tecnologias. Fora isto, a educação sofreu processo de privatização onde o acesso tornou-se mais restrito.
As desigualdades de gênero e de etnia são mantidas nas escolas, pelos comportamentos em sala de aula, na relação aluno-aluno e professor-aluno. Todos este fatores contribuem negativamente no processo de exclusão do trabalhador que não conseguiu se adaptar. Com isto, o despreparo técnico-profissional aumenta o número de desempregados.
As empresas diante da competitividade não conseguem esperar que o profissional se prepare... elas querem o profissional pronto para produção. Este profissional, inoperante e impotente é dispensado e sente-se só, triste e desesperado. Os recursos do auxilio desemprego não são suficientes, a esposa reclama, os filhos choram e o desespero torna-se alarmante, o que fazer? Este sofrimento devido à modernidade tem levado alguns a fuga da realidade e ao uso compulsivo de álcool. É sabido que o etanol provoca, muitas vezes, o esquecimento. Contudo é necessária uma dosagem cada vez mais alta para alcançar o mesmo nível de esquecimento.
 Não é apenas o desemprego que leva ao alcoolismo. A mídia impõe cada vez mais a necessidade do ter. Todos têm... “o marido da vizinha ganha menos e comprou”. Quem não tem é fraco, desconsiderado e criticado, dessa forma, faz uso das facilidades do crédito e se afoga nas dívidas até que a ficha cai e percebe-se o quanto está comprometida a renda familiar. Noites são perdidas em cálculos sem soluções favoráveis; as contas começam a chegar; as empresas de cobranças enviam cartas e telefonam, mas o pior é quando se apela também aos meios não oficiais de créditos que proporcionam o aparecimento do cobrador que geralmente não é amistoso e faz ameaças. O desespero também se instala levando homens e mulheres ao alcoolismo.
Fora estes pontos abordados, queremos relembrar ainda que algumas mulheres começam o uso abusivo porque tem vida sacrificada devido à pobreza, a violência doméstica, a falta de instrução que lhe custou à perda do controle da natalidade e consequentemente um processo depressivo cuja fuga se fundamenta no alcoolismo.

                                                                                                                Reginaldo Silva de Lyra

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