Antes de fazermos uma
abordagem mais específica sobre os sofrimentos da modernidade como fatores
causadores do alcoolismo vejo a necessidade de analisar, para maior
elucidação, “ O LIVRO DA DOR E DO
AMOR” de J.-D. Nasio, traduzido por Lucy
Magalhães ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997). Neste contexto percebemos o
exemplo de Clémence dado pelo autor que começa a elaborar o seu conjunto de
argumentos a respeito da dor em perspectiva com o inconsciente. Ele exalta que
no momento do sofrimento pedir o esquecimento é uma agressão ao outro, p. 14. As vezes as pessoas ficam sentido a
obrigação
de consolar o
outro, sofredor, mas de acordo com o autor, o luto é construído como uma
necessidade até que, finalmente, a intensidade deste sofrimento se gaste, p.
17. Assim, como a doença nos obriga a
buscar a saúde, a dor nos leva a reconstrução do nosso ser. Reconstruir o que
fora brutalmente amputado porque mantinha o equilíbrio do psiquismo, p 18. O
autor estabelece com precisão as diferenças entre dor e sofrimento, mas
deixa-nos a ideia de que a dor está contida no sofrimento quando relata que o
sofrimento é uma perturbação global, psíquica e corporal, p. 19.
Aprofundando um pouco mais
o conceito, notamos o Dr. Nasio
elaborando a ideia de que a “dor sintoma” é a manifestação exterior e sensível
da pulsão inconsciente, isto é, dor recalcada, dessa forma, a dor é objeto e
alvo do prazer sexual sadomasoquista, p. 20. O funcionamento psíquico é
regido pelo princípio de prazer, mas a ruptura brutal com o ser amado torna
esse princípio inoperante, p. 21. Então a ruptura brutal com o ser amado torna
o princípio regulador do prazer inoperante e este é quem rege o funcionamento
psíquico, p. 21. Dessa forma, ele afirma que desprazer não é dor, todavia exprime
a autopercepeção pelo eu de uma tensão elevada, mas a mesma dor exprime a
autopercepção de uma tensão incontrolável, enfim, o sentimento doloroso não
reflete as oscilações regulares das pulsões, mas uma loucura da cadência pulsional,
p. 22.
Uma dor psíquica, como a
dor de amar, ocorre de forma diferente da dor física porque a sua causa esta
fora do corpo. Essa dor, como afeto, resulta do desligamento do ser amado ou
coisa amada, em outras palavras essa dor gera um sofrimento interior parecido
com uma “destruição” da própria alma. Perder essa ligação é semelhante a uma
violenta agressão física, com isto, o equilíbrio é quebrado e o princípio do
prazer é abolido, p. 25.
O autor faz uma abordagem
do sofrimento do ponto de vista de Freud- ‘o sofrimento oriundo dessa fonte é
talvez mais duro para nós do que qualquer outro’- e nesta perspectiva faz
alusão ‘a origem do tal sofrimento como uma ameaça’, usando outro fragmento do
texto ‘Mal-estar na cultura’ do
próprio Freud que diz: ‘provém das nossas relações com os seres
humanos’. Sendo assim a dor psíquica é oriunda do sofrimento da perda dos laços
de amor com o ser amado. Com isto, percebemos a segunda definição da dor
psíquica, do ponto de vista metapsicológico, que é o afeto que exprime na
consciência a percepção pelo eu — percepção orientada para o interior, não da
barreira periférica do eu, como no caso da dor corporal, p. 26.
Muitas pessoas fogem de ter
uma vida amorosa e apaixonante porque temem a dor do sofrimento da perda deste
mesmo amor, isto é, um fato constatado por Freud quando menciona: ‘Nunca
estamos tão mal protegidos contra o sofrimento como quando amamos, nunca
estamos tão irremediavelmente infelizes como quando perdemos a pessoa amada ou
o seu amor.’ Logo existe um paradoxo, diz o Dr. Nasio, dessa forma, mesmo sendo
uma condição constitutiva da natureza humana, o amor é sempre o princípio dos
nossos sofrimentos, p. 27. Com isto, abre-se mais o conceito e notamos um
transtorno pulsional se instalando por conta da perda do objeto amado e o eu se
concentra na representação, mas o Dr. Nasio reafirma que o processo de luto é o
inverso da reação de defesa do eu que superinveste na imagem do amado perdido.
Se a pessoa não cumprir o luto por causa da falta do desinvestimento o eu fica
imobilizado em uma representação, sendo assim o luto se eterniza em um estado
crônico, p. 29.
O eu sofre uma clivagem, ou seja, coexistência
de duas atitudes contraditórias, uma que consiste em renegação e outra
em aceitação. Assim a dor não é pela perda do ser amado, mas por continuar
amando a representação dele que está misturada com o próprio eu sofredor, p. 30.
Nesta perspectiva é interessante a abordagem do autor e como ele
faz a aproximação do eu à loucura pelo fato de
não admitir a perda ou ausência na realidade. O enlutado que procura
reviver em sua mente a presença do amado perdido e inclusive na esperança de
reencontrá-lo vive uma alucinação que reduz a sua dor devido a sua convicção
delirante. Todo este processo se faz em função do amor ser maior que a razão e
isto propicia uma realidade alucinada, p. 31. A alucinação com um membro
amputado assim como com um amado perdido se dá por conta do superinvestimento
da imagem psíquica; isto é, foraclusão, de acordo com o autor, sobrecarga,
expulsão e alucinação com a representação, dessa forma, não temos apenas uma
negação, mas uma foraclusão, p. 32. O objeto amado perdido (um braço amputado
ou o morto) continua vivendo na realidade do eu devido o seu superinvestimento,
p. 33.
Considerando o prazer e o
desprazer como princípios que regem o psiquismo, sendo que quando o psiquismo
esta em tensão temos o desprazer, mas quando a descarga parcial ou total desta
tensão temos prazer, logo, o funcionamento normal do psiquismo é de desprazer,
isto é, em constante tensão, p. 34. O sistema inconsciente possui uma
insatisfação de desejo que nunca realiza-se totalmente, mas esta insatisfação é
viva e suportável, dessa forma, o desejo ainda que insatisfeito continua ativo
e o psiquismo estável, p. 35. O ser do nosso amor exerce uma função de provocar
a insatisfação no inconsciente e não a satisfação. Ele excita o desejo, mas não
o satisfaz completamente, dessa forma, garante a insatisfação necessária para
se viver, p. 36. O amor também pode ser destinado para minha própria imagem.
Mas quando
surge a ameaça de perdemos um desses desejos aparece
a angustia no eu. O desaparecimento brusco sem ameaça provoca a dor, isto é, se
entrar em luto, se for abandonado, se perder o amor que dedico a mim mesmo ou
se sofrer mutilação, sendo assim, essa perda brusca sem ameaça provoca a dor
psíquica ou dor de amar, p. 37.
A fantasia com o eleito, ser amado, que
outrora recebera um uma cobertura de amor, ódio ou angustia, diz Dr. Nasio, instala
a insatisfação e assegura o equilíbrio do inconsciente; fazendo parte do nosso
interior recentrando o desejo e tornando-o insatisfeito, mas tolerável. Com
isto temos duas presenças: a viva e a fantasiada. A viva é objeto das nossas
insatisfações e a fantasiada é reguladora da intensidade da força do desejo, p.
40. Com isto, é necessária a presença da pessoa viva para que nela seja
repousada a pessoa fantasiada sem a qual viria a infelicidade e dor. A pessoa
amada e viva, não fantasiosa, é o objeto onde repousa o meu desejo, pois tem um
corpo vivo que me provoca e excita, e nela são projetadas as imagens da minha
fantasia, p. 41. Sendo assim, posso constatar que existe uma suposta inversão
da fantasia, isto é, se como o ser amado se tornou uma fantasia para mim, eu me
tornaria uma fantasia para ele, aumentando o poder do outro sobre o meu eu.
Assim eu me tornaria também o regulador da insatisfação do outro, fazendo
assim, os laços amorosos seriam potencializados e o desejo pelo outro estaria
sujeito ao amor à pessoa viva e a sua imagem fantasiosa em meu inconsciente, p.
42.
O
eleito simbólico é uma figura recalcada, diz o autor, isto é, uma duplicação do
ser amado no meu inconsciente, p. 46. Há uma reflexão da minha imagem na imagem
do eleito no meu inconsciente e isto só ocorre se o meu ser amado possuir um
corpo real e vivo. Quando a nossa própria imagem prevalece temos um amor
narcísico, mas quando é a do outro cria-se uma dependência do outro. Há, ainda,
uma espécie de fragmentação das imagens do outro que está em mim e a minha
própria imagem, dessa forma, a minha imagem está misturada com a imagem do ser
amado, p. 47.
De
volta a questão da dor, notamos que ela aparece quando existe uma ameaça de
perder o eleito da fantasia, o amado, p. 49. A
dor não é pela perda do amado, mas pelo que ele representava dentro do inconsciente,
ou seja, sem a imagem do eleito só existe desprazer e não há descarga de tensão
e assim a ruptura com a fantasia que já não tem mais o corpo de apoio provoca a
dor do desligamento do eleito. Essa dor, com o passa dos meses, se reduz por
conta da diminuição da imagem do amado desaparecido, p. 50. Sendo assim, a dor
psíquica é a dor da perda de si mesmo projetada no amado o que provoca uma
desordem pulsional, p. 52. O próprio analista torna-se um outro simbólico para
o paciente a fim de ajudar no ajuste da desordem pulsional. Mas a dor psíquica
pode ser dividida em duas: quando o amado está enfermo e morre e quando morre
subitamente... diz o autor que o segundo sofrimento recebe a denominação de
verdadeira dor, p. 53.
A dor pode se sentida
fisicamente como algo que desagrega e aniquila. Sua manifestação mais primitiva
é através do grito e da palavra, não há dor sem o eu, mas ela está no isso, p.
53. Ampliando os conceitos de Eu e Isso
recorremos ao DICIONÁRIO DE PSICANÁLISE, TRAD: Vera Ribeiro ( psicanalista )
e destacamos o seguinte: “o eu representa o que podemos denominar de razão
e bom senso, em oposição ao isso, que tem por conteúdo as paixões.”
A dor inconsciente faz o paciente sofrer sem
saber por que, a exemplo disso, temos um alcoólatra que sente a dor da sede
compulsiva, mas ignora sua origem. Ao embriagar-se tenta neutralizar os
distúrbios internos, isto é, o eu é sabotado pela pelo efeito neutralizante do
álcool que causa esquecimento e as turbulências pulsionais não são
transformadas em emoção dolorosa. Mas os traumas psíquicos podem ser gerados
por um forte trauma ou pequenos traumas que se acumulam no inconsciente. Este
acúmulo inofensivo pode ser deflagrado um dia por um trauma inofensivo, mas
capaz de produzir uma grande dor que nem o paciente sabe de onde vem, p. 59.
A
pessoa do amado é no exterior, diz o autor, o que o recalcamento é no interior;
representa o limite contra um gozo perigoso, mas inalcançável. A insatisfação
tolerável é garantida, porém não nos impede de sonhar. Com a morte do outro
morre-se o limite representativo e o luto ajuda a reconstruir um limite novo,
p. 60. Novas fantasias são impedidas de serem realizadas em função dos laços
realizados com o primeiro amor, tais fantasias são denominadas pelo autor de
fantasias invasoras ou exclusivas. Não podemos esquecer que o eleito pode ser
amado ou odiado, dessa forma o laço de fantasia pode ser negativo. No luto
patológico diz o autor: “A pessoa enlutada continua a fantasiar o seu eleito
morto como se ele estivesse vivo”, p.
61. A dor da ruptura do laço
depende da interpretação do abandonado, mas se há dúvida da volta do amado, tem-se
uma angustia. A dor ou o amor vai depender da presença do amado, porém vale
lembrar que quando o luto encerra pode-se surgir outro eleito que fará a
substituição do antigo amor, ainda que outrora eleito como insubstituível,
p.62.
O
amor pode ser cego ou resignado. Sendo assim uma pessoa pode não admitir a
perda do amado ou aceita-la normalmente fazendo o luto de forma adequada, dessa
forma, aceitando serenamente a realidade da pessoa falecida. Isto se dá porque
o eu desinveste lentamente da
representação do eleito amado que já não existe mais,
p. 63. A dor da perda do amado provoca
abatimento, grito e lágrima, mas não há desejo de parar de sentir a dor, pois a
dor é uma homenagem ao amado que partiu, portanto precisa ser suportada; não é
masoquismo, é prova de amor. É o tipo de dor que não deseja consolo, mas
necessidade de ser descarregada, gozada. Como já fora mencionado pelo autor, a
angustia está relacionada a possibilidade de perda, diferente da dor que é
perder realmente o amado, eleito pela fantasia. Sendo assim, é necessário
salientar que Dr. Nasio apresenta três formas de angustias:
A angústia diante da ameaça de perder o ser
amado, a angústia diante da ameaça de perder o órgão amado (angústia de
castração), e a angústia diante da ameaça de perder o amor do nosso amado, à
guisa de castigo por um erro real ou imaginário que eu assumo (angústia moral
ou culpa). 65
Há
de se admitir o fenômeno doloroso que se transmite através do viés do sistema
nervoso e suas consequências psicológicas e sociais. Mas a dor conhecida como
‘psicogênica’ é exclusivamente psíquica,
ou seja, sem causa aparente, p. 69. Dr. Nasio coloca em questão as duas visões
a respeito da dor, a saber: ‘uma experiência sensorial e emocional
desagradável, associada a uma lesão tissular real ou potencial, ou ainda
descrita em termos que evocam essa lesão’. Mais do que uma sensação, diz ele, a
dor é emoção que pode nascer sem lesão.
E ressalta a necessidade da pesquisa psicanalítica para situar adequadamente o
psiquismo como origem da dor também, e afirma ainda: “Assim sendo, se
desejamos saber por que nossos pacientes sofrem e por que nós mesmos sofremos,
é preciso tomar a lente da metapsicologia e descer até o centro do eu, para
descobrir a psicogênese da dor, p. 70”.
A dor causada por uma
lesão é percebida no nível do traumatismo e
pela comoção gerada. Toda lesão será percebida pelo eu como uma agressão
periférica externa “ruptura fronteiriça”. Mas no caso de uma lesão grave o eu
não percebe perifericamente, pois todo o ser está transtornado, p. 72. Quando
há um ferimento real percebido na periferia do corpo, ocorre também uma
formação da imagem do local lesado que fixada na consciência que o autor
denominou de ‘ representação do local lesado e dolorido do corpo’. A percepção
é que a dor é periférica e está concentrada na região lesionada, p.73. Neste
momento o Dr. Nasio faz uma revelação surpreendente ao dizer que a dor (queimadura)
não está no ferimento, mas no cérebro e nos alicerces do eu. Mas já que a
percepção é de que a dor emana do ferimento, este se revela como segundo corpo.
Contudo para que a dor se torne comoção é necessário que a estimulação seja
muito forte para ir além da excitação sensorial e realizar um trauma interno,
isto é, “somato-pulsional” e não apenas “somato-sensorial”, p. 74.
[...] a dor da lesão comporta três aspectos: real,
simbólico e imaginário. Real: percepção somato-sensorial de uma
excitação violenta que afeta os tecidos orgânicos. Simbólico: formação súbita de uma representação mental e consciente do local do
corpo onde a lesão se produziu. Imaginário: como o corpo é vivido na periferia, toda lesão será vivida
como periférica, p. 74.
[...] Diremos então que o calor da chama que
atacou a pele se transformou imediatamente em uma corrente de energia interna,
devastadora e não controlada, que mergulha o eu em um estado de choque
traumático. Pela brecha aberta na barreira de proteção irrompe, no seio do eu,
um afluxo súbito e maciço de energia, que submerge não o corpo, mas o psiquismo
no seu próprio núcleo (neurônios da lembrança). Com isso, a homeostase do
sistema psíquico é rompida e o seu princípio regulador — o princípio de prazer
— encontra-se momentaneamente abolido (Fig. 2). É então que o eu, embora
transtornado, consegue autoperceber o seu próprio transtorno, isto é, a
perturbação das suas tensões pulsionais. Essa singular autopercepção pelo eu do
seu estado de comoção interna — percepção somato-pulsional — cria a emoção
dolorosa, p. 75.
Quando a percepção
somato-pulsional é tão forte que fica gravada como uma imagem na memória e no inconsciente, este não
o reflete na superfície da consciência.
A dor da comoção fica gravada no inconsciente, mas retorna na carne, convertida
em dor real, lesão psicossomática; ou na consciência como outro afeto, tão
opressor quanto à culpa. O sujeito
repete a experiência passada de uma dor violenta como a queimadura, mas a dor
pode reaparecer representada em uma nova sensação, uma lesão psicossomática, um
afeto ou uma ação penosa, p. 77. A experiência dolorosa se grava no psiquismo e
reaparece no inconsciente. Menciona o autor que Freud imaginava que o eu era
composto de dois elementos essenciais: ‘energia’ e ‘neurônios’. Uma parte da
energia vem do exterior e outra do interior intra e interneuronal. Os neurônios
eram subdivididos em três grupos: na periferia do eu, no centro do eu-‘neurônios
da lembrança’ e conjunto neuronal que opera uma função de percepção voltada
para o interior, p. 78. Já os neurônios perceptivos detectam as variações da
tensão psíquica e as repercuti na consciência. O ritmo do fluxo energético é
sincrônico, agradáveis, mas se assincrônicos e dolorosos, desagradáveis. A
ficção do eu imaginada por Freud continua sendo a matriz da vida psíquica.
Contudo a passagem violenta do fluxo energético acarreta duas consequências:
imagem mnêmica e uma excitabilidade aumentada do conjunto neuronal. Dessa
forma, a imagem que ficará gravada no neurônio é a da agressão ou do objeto
agressor, p.79. O neurônio que conserva essa imagem fica irritável e pronto
para reagir a uma excitação que pode levá-lo a descarregar sua energia sob a
forma de nova dor, de uma lesão, uma ação ou um afeto. O autor menciona novamente
Freud que propôs o termo de ‘trilhamento’ para esse fenômeno. Quando a energia
sensibiliza os neurônios, bastam fracas
excitações para reativá-los e reanimar as suas imagens; mesmo que essas
excitações sejam mais imperceptíveis e de fraca intensidade, podendo ser
externas ou internas. Contudo a imagem mnêmica da agressão é reativada podendo
fazer aparecer uma nova dor situada em
um ponto do corpo diferente do que foi afetado, dessa forma o sujeito
experimentará uma sensação dolorosa inexplicável, p. 80.
Quando um médico recebe um
paciente, diz o Dr. Nasio, com uma dor sem uma causa específica normalmente não
faz associação psicológica e provavelmente prescreverá um ansiolítico. Mas
ressalta o auto que no corpo são projetadas as lembranças e o sofrimento atual
somático. Um psicanalista, por sua vez, convidaria o sofredor a falar dos seus
traumas físicos ou psíquicos, isto porque o afluxo de energia dolorosa poderia
ter afetado outros neurônios na época do trauma, constituindo um erro que
poderia ter ficado gravado em um neurônio da lembrança. Se a dor corporal foi
violenta, o neurônio da lembrança do erro será trilhado, com isto, uma fraca
estimulação despertará um sentimento de culpa inexplicável. Essa sensibilidade
trilhada pode gerar um afeto opressivo, provocar uma lesão tissular ou ainda
despertar uma compulsão dependendo da imagem mnêmica, p. 81.
Quanto ao sofrimento individual, experiência
única, proveniente da dor do corpo ou do espírito, se misturará a uma mais
antiga que habita no eu. Minha dor está ligada a outra do passado. Segundo Freud, cita o autor, a emoção não é o
que sentimos agora, mas também a repetição do sentimento experimentado outrora.
Um afeto é a volta atenuada do abalo intenso. O sentimento de hoje, agradável
ou desagradável, resgata emoção arcaica, com isto, não existe afeto novo, pois
ele é sempre fruto de uma repetição. Dessa forma a gênese do afeto é o
despertar de um afeto passado, por isto, não existe afeto puro, até porque,
ele é sempre reativado por uma fantasia. E, como enuncia Lacan, um
significante é sempre a repetição de outro significante; por fim, só existe
afeto repetido, p. 83. A dor inconsciente é a memória do antigo sofrimento; ela
não é a dor do momento, mas um conceito amplo que começa com um forte sofrimento
do corpo oriundo da agressão externa e despertado por uma ligeira excitação,
geralmente interna, p. 84. A dor inconsciente, diferente de uma lembrança
consciente, é a memória inconsciente da dor. A emoção dolorosa é a união da
sensação desagradável de hoje e a primeira dor. Uma dor é humana porque é
memória inconsciente. O afeto doloroso volta a dar vida à antiga dor de um
traumatismo. O psiquismo, por sua vez, forma a representação do corpo lesado
“eu-consciência” que sofre o impacto da comoção “eutranstornado” que
autopercebe o transtorno que ela acarreta “eu-órgão endoperceptor” que registra
e restitui esse impacto “eu-memória inconsciente”, p. 85.
Além de sofre um “mal”, o eu sofre a dor de
protestar contra ele. Esforça-se para se defender contra esse transtorno. A dor
física é um esforço de defesa tentando curar-se sozinho, “auto curativo”. O eu
desloca para o ferimento toda a energia a fim de
“fechar a
brecha e deter o fluxo maciço de excitações”, chamado
por Freud, conforme Dr. Nasio, “ contrainvestimento” ou “ contracarga” - que se
opõe a brutalidade da excitação, p. 86. O corpo ferido é tratado pelo eu que
ocupa-se, também, da representação da lesão. Com isto, privados da integridade
corpo ou do objeto, produz-se um excesso de investimento afetivo da imagem
local ou um excesso de investimento afetivo da imagem do objeto.
Esse excesso é a dor. A imagem superinvestida psiquicamente chama-se
‘superinvestimento narcísico’ e o da imagem (o ser amado) chama-se
‘superinvestimento do objeto’, p. 87. Para resistir à comoção, isto é, a emoção
forte e repentina, o eu se lança sobre o símbolo do local e a ele se prende. A
dor é o esforço do eu para se livrar da comoção, por isto, se lança sobre o
símbolo. Há uma destruição da união psíquica, dessa forma o eu funciona
desestabilizado pelo isolamento, p. 89.
O autor relata, ainda, que
a imagem do local doloroso corresponde a uma “anatomia fantasística” e nenhuma
imagem da região corporal oferece o reflexo do corpo, pois as percepções da
realidade estão deformadas. Por conta disso, temos o local do corpo atingido
pela lesão, inserido na cena fantasiada de um sonho e associado à ação de um ser
irreal. A representação do local dolorido é impressão do passado e presente,
nascida com a lesão e com destino de concentrar “o fluxo descontrolado de
energia”, isto é, a imagem incerta de um fragmento do corpo no “centro da cena
fantasiada”, p. 92. Desta feita, o eu, diz o autor, visualiza a região dolorida
(interna ou externa) do seu corpo. A dor corporal é o afeto experimentado pelo
eu quando ferido, comocionando ou relembrando uma dor antiga, fazendo um
esforço de superinvestimento da imagem, suavizando a comoção, mas acentuando a
dor, pois o estado de comoção dói, e a defesa contra a comoção dói mais, p. 93.
A ciência deve prolongar a
tese do superinvestimento da imagem mental da região dolorida, acredita o
autor, e essa tese freudiana se tornará um conceito-chave nas futuras pesquisas
da neurofísica da dor. Os neurologistas explicam que memória é uma
“estocagem de imagens nos neurônios”. Já os neurocientistas formulam hipóteses
próximas dos primeiros desenvolvimentos de Freud sobre a memória veiculada
pelas células chamadas ‘neurônios da lembrança’. Jean-Pierre Changeux, menciona
Dr. Nasio, supõe existir imagens mentais estocadas nos neurônios- ‘objetos
mentais’, enquanto Damasio, considera que as imagens mentais, ao invés de serem
estocadas nas células, se elaboram a partir de uma ‘proto-imagem- representação
potencial’, p. 95. Na visão psicanalítica, ressalta o autor, a dor é a ativação
da “representação potencial”, não sendo
a lembrança, mas o meio de formá-la. São os neurônios
da lembrança que conservam a imagem do objeto
agressor. Sua reativação provoca uma dor semelhante a inicial.
[...] sabemos atualmente que a sensação
dolorosa resulta, entre outros fatores, da mediação de uma proteína chamada substância P (Pain, que significa “ dor” ). A mensagem
nociceptiva é transmitida quando o axônio de um neurônio secreta o
neurotransmissor P, que entra
em contato com os receptores localizados na dendrite de um outro neurônio, p. 96.
Os neurônios estimulados
por fracas excitações internas, liberariam a substância geradora de dor que
excitaria os neurônios da lembrança, reanimaria a imagem do objeto hostil e
despertaria a dor antiga, p. 96.
Os ‘neurônios retentores’
ou ‘células da lembrança’ são os neurônios da memória, isto é, têm por função
arquivar a ‘ foto’ deixada pelo agente que provocou a excitação- “foto do
objeto hostil na dor, foto do objeto de amor no prazer”, p. 97.
Os outros neurônios-
‘células de percepção’, tratam a excitação, mas ao contrário dos neurônios da
lembrança, deixam-se atravessar pelo fluxo de excitação, sem guardar nenhum
vestígio. R. Llinàs define a consciência como uma relação harmoniosa entre o
ritmo dos neurônios oscilantes do tálamo e o dos neurônios do córtex cerebral. Ressalta
o autor que Freud manifesta apenas timidamente interesse pelo ritmo, mas define-se
todo afeto como a expressão na consciência das variações ritmadas das pulsões,
logo a “dor é muito diferente do prazer e do desprazer” porque ela exprime não
um ritmo pulsional particular, mas a ruptura
violenta desse ritmo, p. 98.
Assim, os sentimentos de prazer e de
desprazer não seriam a expressão do nível de intensidade das pulsões (prazer =
baixa intensidade; desprazer = alta intensidade), mas antes a expressão das
oscilações de tensão, da alternância dos picos e das quedas da tensão ao longo
de uma duração definida, p. 98.
A ruptura da cadência
pulsional referida pelo autor corresponde à perturbação das tensões, pondo em
xeque “o princípio de prazer/desprazer”, provocando a cessação brusca do equilíbrio
do sistema econômico do eu. Freud estudando os neurônios de percepção
diferenciava dois tipos particulares: os que percebem as excitações vindas da
periferia do corpo e os que captam as oscilações de tensão interna, p. 99. “A dor é um afeto sentido conscientemente”,
ressalta o autor, dessa forma, o eu desacelera o movimento energético e isso
graças a uma grade disposta de tal maneira que um neurônio demasiado investido
de energia tenha a possibilidade de fazer derivar uma parte da sua carga para
neurônios laterais. O sistema dos neurônios do eu se torna um órgão inibidor,
p. 100. Então, o Dr. Nasio diz ainda que o papel da inibição é determinante,
pois preserva o eu de um “transbordamento de excitação” que ameaçaria a sua
integridade. “O afeto doloroso rompe todas as barreiras internas, mas sem
destruir o eu”. Damasio faz a diferença entre dois componentes na percepção da
dor: uma percepção “somato-sensorial” e uma percepção de uma perturbação global do corpo. Cita o autor
que é a percepção de uma perturbação global que corresponde à emoção dolorosa.
Reforça que o cérebro formaria duas imagens da dor: “uma imagem somato-sensorial
e uma imagem emotiva”. De acordo com ele, o eu é um conceito do pensamento
científico e com papel de um terceiro, espécie de ‘meta-eu’, que sintetizaria
e ajustaria essas duas imagens, p. 101.
O Dr. Nasio estabelece a
diferença entre ele e Damasio através de uma réplica: ‘o cérebro percebe o
estado perturbado do corpo, e daí surge a emoção dolorosa’ diria Damasio e ele
responderia ‘o eu transtornado autopercebe o transtorno pulsional, e daí emana
a dor’, p. 102.
Uma algia psicogênica pode
ser comprovada pela pressuposição de que um
corpo é dotado de memória. Outra hipótese de uma origem psíquica se
baseia na teoria freudiana, que considera a conversão histérica como o “salto do psíquico para o
somático”. Uma pulsão recalcada salta do campo do inconsciente para o do corpo
e se transforma em dor somática, p. 103. Com isto ela vai se localizar
justamente na parte do corpo atingida outrora, quando de um uma agressão. Uma
pulsão incestuosa pode aflorar à consciência como sentimento de vergonha. A dor
volta para o inconsciente, levando a imagem da parte do corpo, ou mais
exatamente “a imagem tátil do contato sensual” entre a pele e o objeto do
desejo incestuoso. Mais tarde, a pulsão reapareceu sob a forma de contraturas
dolorosas localizadas no mesmo lugar onde o objeto do desejo incestuoso tocara.
A sensação erógena e culpada de um dia se tornou, posteriormente, sensação
dolorosa sem razão aparente. Ao passo que essa segunda origem da dor
psicogênica — a conversão histérica — se explica pela transformação de uma
pulsão em dor imotivada, esta causa psíquica se refere a um outro modo de relações entre pulsão e
corpo. 104
Relata o autor que uma
pulsão recalcada pode se converter em corpo que sofre porque a pessoa fora
lesada outrora, ‘marcada’ por uma antiga dor orgânica insignificante. Daremos a
esse terceiro mecanismo o nome de “marca
somática sobre a pulsão”, p. 105.
Na conversão histérica
está contida a fórmula freudiana do ‘salto enigmático do psíquico para o
somático’, isto é, da pulsão para o corpo; a terceira causa da dor psicogênica
está contida em uma fórmula mais ampla: do somático para o psíquico, depois do
psíquico para o somático. A dor psicogênica pode aparecer onde havia uma antiga
dor- lembrança, ou então, aparecer no lugar marcado outrora por uma pulsão, ou
ainda, no local em que a pulsão fora marcada por uma velha dor. Em um incidente
real, o objeto agressor provocou uma dor muito intensa chamada “dor da
comoção”. Com isto, uma representação psíquica inconsciente memoriza os sinais
agressores sob a forma ‘foto’, imagem mnêmica, p.106. A dor da comoção, de
acordo com o autor, deixou dois sinais: a foto do agressor e a excitabilidade
dessa foto. Quando a imagem é reavivada uma descarga faz surgir nova dor. A
reativação da imagem mnêmica dá lugar a uma segunda dor ou a outras
manifestações na vida cotidiana do sujeito: “sonhos, comportamentos
inexplicados ou estados afetivos particulares”, p. 107.
Por conseguinte,
chamamos dor inconsciente ao conjunto do processo ignorado pelo sujeito que
começou com uma dor traumática e culminou com o vivido atual de uma experiência
penosa. A
dor inconsciente é finalmente o
nome que damos a um circuito, impresso por uma dor sentida, reativado por uma
excitação ocasional e manifestado enfim por uma outra dor sentida [..] em
si mesma a dor inconsciente não é “ uma sensação sem consciência” pura, simples
e desconhecida, como diria Maine de Biran, mas um encadeamento desconhecido de
acontecimentos, que resulta na dor que eu vivo hoje [...] a dor inconsciente só
existe depois do aparecimento da dor de hoje [...], p.108.
Todas as dores, diz o
autor, estão relacionadas com a histeria. De acordo com mecanismo de conversão
histérica a dor orgânica é parcialmente. O surgimento de uma dor corporal faz
aparecer às vezes a eclosão de uma histeria, às vezes a de uma psicose. Com a representação psíquica continuando no
seio do sistema, a dor corporal se explicaria por um mecanismo de conversão
aparentado com o da histeria. A dor seria então o “duplo somático de um
elemento simbólico’, ou seja, a expressão somática da imagem do corpo lesado,
p. 109”. Sendo assim, a parte psíquica está submetida a todas as regras da
conversão histérica no caso da origem da dor orgânica, p. 110. Porém, na página
113 o autor assegura que a dor é uma das figuras mais exemplares do gozo, não
no sentido de prazer sexual, mas entendido como a tensão máxima suportada pelo
psiquismo. Assim, a “dor é o último grau de um gozo no limite do tolerável”.
A dor, levando em
consideração a excitação traumática, relembra o autor, não responde aos
critérios de prazer e desprazer, mas é um afeto penoso e desagradável, contudo
é muito diferente do desprazer, isto significa a exclusão do “princípio de
prazer/desprazer regulador do funcionamento do nosso psiquismo”. Reforça, ainda,
que quando há dor, estamos “além do princípio de prazer”, p.116. Neste momento
o autor faz um questionamento: ‘Como uma dor pode ocasionar uma satisfação
sexual?’ E cita o que na sua ótica seria a resposta de Freud “ uma excitação
sexual se apoia e nasce a partir de uma excitação corporal”, mas ele mesmo
relata que tal resposta não é suficiente. Dessa forma, ele mesmo reponde “
poderíamos dizer que a excitação sexual se apoia sobre uma sensação dolorosa”.
Sua argumentação está subtendida na ideia de que todo prazer sexual é um prazer
perverso e está muito próximo da vida fisiológica do corpo, p. 117. Na
tentativa de melhorar a origem da sexualidade, o Dr. Nasio lança mão dos
argumentos Lacanianos e relata que tudo fica mais fácil de entender por causa
da invenção do “estádio do espelho”. Nesta perspectiva fala-se de uma
discordância, afastamento básico entre um corpo prematuro e a imagem
antecipadora desse mesmo corpo já maduro. A sexualidade nasce ali, diz ele, na
discordância entre nosso corpo insuficiente e um imaginário, “demasiado
antecipador de uma maturidade que nunca será verdadeiramente atingida”. O
afastamento entre esses dois planos gera o
nascimento da libido, gênese da sexualidade. A matriz completa é uma
discordância, não entre um corpo prematuro e uma imagem, não entre um corpo que
falha e uma imagem antecipadora, reforça o autor, mas “entre o desejo da criança e o da sua
mãe”, p. 118.
É nessa discordância vivida pela criança
entre a impotência do seu desejo e a inacessibilidade do desejo do Outro que se
situa, na etapa fálica, no momento do complexo de Édipo, o nascimento da
sexualidade. Vamos mudar os termos, e ao invés de dizer “ nascimento da
sexualidade” , digamos “ aparecimento do falo como significante” . A partir
desse desacordo básico entre um desejo insuficiente, prematuro — o da criança —
e o desejo intolerável e impossível da mãe, surgirá o falo como significante
que vem marcar todas as dissimetrias entre impotência e impossibilidade, ou
entre a prematuridade e o logro imaginário
de um Todo possível, p. 118.
A teoria analítica afirma que todos os
objetos, diz Dr. Nasio, são caracterizados como objetos de pulsão semelhante
ao falo; “o seio como objeto da pulsão
oral, o olhar como objeto da pulsão escópica, a voz como objeto da pulsão
invocadora, e as fezes como objeto da pulsão anal”. Da mesma forma nasce a
dor. Na época edipiana o pênis é um
objeto ameaçado. É uma ameaça de castração e não perda ou uma mutilação. Surge
então uma angústia e a criança encontra uma saída humanizada: “inventar um significante”, p.
119.
[...] Não haverá um seio significante, nem
uma voz significante, nem ainda fezes significantes, pela simples razão de que
nenhum desses objetos se destaca sob o domínio da ameaça e da angústia [...] O
objeto da pulsão, tal como a chupeta ou até o mamilo materno, é pois um objeto
descartável: uma vez utilizado por nossos desejos, nós o deixamos cair e
tratamos de outra coisa, de outro objeto. É o que Lacan teria chamado a “ queda
do objeto a”.
p. 119.
O eu é uma projeção mental. A
representação superinvestida narcisicamente é uma imagem mental. O
superinvestimento do representante psíquico do local ferido pode se compreender
como uma superexcitação equivalente ao prazer sexual perverso ‘apoiado’ sobre
uma função fisiológica. Freud, diz o autor, escreveu: “Conhecemos o modelo de
um órgão dolorosamente sensível, sem contudo estar doente no sentido
habitual: é o órgão genital em estado de excitação [...]”, p. 121. A dor é
sempre sofrida pelo eu, diz Dr. Nasio, seja porque o eu a sofre ou porque se
identifica com o sofredor, dessa forma, conclui-se que “o gozo sexual, no
âmbito da pulsão sadomasoquista, é sempre um gozo fundamentalmente masoquista”.
O autor na sua experiência confessa que os verdadeiros perversos só consultam o
analista em certos momentos de abatimento, com isto, é
percebida a dificuldade de experiência clínica com eles. Mas na
perspectiva sadomasoquista, a dor só aparece quando o eu se identifica com o
outro que sofre o mal e, além disso, o eu se identifica com aquele que provoca
o mal; o eu se identifica com o outro masoquista e sádico; logo que assume os
dois papéis, ele instala no seu
psiquismo os personagens da fantasia sadomasoquista: “um supereu sádico e um eu
sempre masoquista”, p. 126.
O autor volta a falar sobre furo, isto é, o vazio ou furo habitado pelo
sujeito, seja uma dor real ou fantasística, permanece no inconsciente como as
‘fantasias originárias’. “A dor é a parte sacrificada para evitar sofrer”,
nesta visão, citamos o site <psicologiaejuventude.blogspot.com.br/2011/07/automutilacao-forma-dolorosa-de-alar.html>
acessado dia 28/07/2015 as 12:12, que faz menção à “Introdução à leitura
do Seminário da angústia de Jacques Lacan” que explica muito bem a questão da
dor que alivia o sofrimento, como segue abaixo:
Se reportarmos às
designações em inglês, o
termo cutter pode ser
traduzido como “cortador”, ou
“pessoa que se corta”.
Resta interrogar que o que o “cortador” corta? Talvez o “cortador” corte
a dor. Assim, automutilar-se seria uma tentativa de diminuir a dor, torná-la
reduzida, aliviada. Ocorre que diante do flagelo, o cérebro produz endorfinas
para aliviar a dor do corpo e esse alívio é sentido pelo sujeito como um alívio
da ansiedade. Logo, para cada pico de ansiedade o sujeito recorre ao corte para
sentir o alívio produzido pelo cérebro, tornando a automutilação com isso, um
ciclo vicioso. O início do quadro ocorre na adolescência, geralmente entre 13 e
15 anos, num momento em que o jovem vivencia intensa raiva ou angústia, e pode
perdurar por muitos anos, pois a pessoa sente-se incapaz de parar com tal
prática.
A dor, de acordo com Dr.
Nasio, “evita confrontar-se com o gozo extremo e intolerável”, ainda que o gozo
seja uma ameaça não realizável. Então a figura que mais se representa no
neurótico apresenta fantasia masoquista de flagelação; um Outro perverso, que
exorta a gozar e a sofrer, a gozar com o sofrimento. ‘Goza” , grita o supereu
perverso. ‘Goza de tudo, mais-além da tua dor e da tua própria vida.
Experimenta a morte conservando a tua vida!’, com isto, a própria dor obstrui o gozo do Outro, gozo
que se dar com dor na carne mortificada, “para não sofrer o louco gozo que a
morte significaria”. Acalma-se a vontade
perversa do outro com sofrimento da dor que chicoteia. Enfim, para a
psicanálise, “a dor é um estranho alívio”, reafirmando a assertiva de que a dor
é sofrimento para escapar ao sofrimento. “Um sofrimento parcial, inserido em
uma fantasia, para escapar a um sofrimento desmedido e perigoso”. Na realidade,
essa dor satisfaz uma forte necessidade de punição, autoflagelo, p. 131.
Cita o autor que a libido deixa
parcialmente a representação de objeto e passa a se transformar em ‘percepção
consciente’, dessa forma, a representação torna-se percepção. Quando esta
representação é investida libidinalmente, temos uma “percepção endógena,
endopsíquica.” A representação de objeto, fantasia de desejo ou percepção
endógena, seriam a mesma coisa. Com isto, a percepção endógena (representação)
é desembaraçada do seu investimento e se torna percepção de um objeto exterior.
No caso específico de paranóia, a libido deixa parcialmente a representação de
objeto e volta para o eu e investe fortemente a sua superfície perceptiva, consciência.
É interessante que a alucinação e o delírio só surjam e só se constituam, diz
Nasio, depois do salto da libido porque ela deixa a fantasia para investir
exclusivamente a consciência, p. 136.
[...] Porque todos os
fenômenos clínicos em que a pulsão parece enlouquecida, como o suicídio, o
delírio, a alucinação, a passagem ao ato, o acting-out, ou ainda a
reação terapêutica negativa, são formações psíquicas que se bastam a si mesmas
e não remetem a nada mais [...]
Classificarei a reação terapêutica negativa na mesma categoria que uma
alucinação, um delírio ou uma passagem ao ato. Porque, de fato, estas últimas
formações são mais que exemplos clínicos; elas constituem formações psíquicas
que não remetem a nada além de si mesmas, e que consistem nisto: o objeto dor,
para retomar a reação terapêutica negativa, não é apenas um objeto pulsional e
fantasístico [...] a fantasia masoquista se desinvestiu e reapareceu no
exterior, transformada em realidade percebida como exterior. A culpa e a dor
inconscientes apareceriam assim sob uma forma exterior e disfarçada. A reação
terapêutica negativa seria pois o simulacro sensível desses dois afetos
inconscientes, p. 137.
Então o autor se refere a
uma máscara usada pela dor diferenciando a formações clínicas patológicas
expressadas pelo grito e pelas lágrimas. Esta explicação se dá pela
apresentação do grito e das lágrimas como “semblantes perfeitos, mais
solidários desse objeto que é a dor inconsciente”, p. 137.
O autor nesta página faz
elaborações riquíssimas ao descrever o gozo do Outro como um sofrimento vivido
pelo sujeito, indicando-o como um perigo e ressaltando que a simples ideia de
gozar demasiadamente dá muito medo.
Relembra que a dor é sofrimento que atua na fantasia, e esta simboliza o
“gozo/sofrimento inacessível”. Relatando esse paralelo, levanta três problemas:
O primeiro problema é o do masoquismo que é uma posição de onde o
sujeito mantém certa relação com a satisfação sexual. O ‘sexual’ não significa
‘genital’, diz ele, mas um prazer diferente do oferecido pela satisfação de uma
necessidade. Dessa forma, fala da satisfação do sujeito em substituir o objeto
gozado pelo Outro, perverso superegóico; agindo a dupla face do supereu, por um
lado, como sádico, por outro, como senhor que comanda. Quando o sujeito toma o
lugar do objeto, na fantasia, sendo voz, olhar, dor ou seio, adota posição
masoquista. Toda fantasia, conclui Nasio, se forma graças a essa identificação com
o objeto e toda fantasia é basicamente masoquista. O segundo problema, continua
Nasio, é a zona erógena. Cita que Freud, nos Três ensaios sobre a
teoria sexual, propõe situar a zona erógena no nível da pele, mas o próprio
Dr. Nasio defende a ideia de não apenas na pele, mas nos músculos, na
tonicidade muscular, à medida que “o bater” é prazeroso, isto é, flagelar o
Outro e espancá-lo. “Mas, excetuando-se as duas zonas erógenas — pele e
músculos — que especificam a dor, outro aspecto singulariza mais o masoquismo;
são os gritos e as lágrimas. O grito, como dissemos, seria o semblante mais íntimo
do objeto dor”, p. 138.
Quanto ao terceiro
problema o Dr. Nasio relembra que pulsão e fantasia não são perversão e a
perversão não é a fantasia. Acredita-se que a perversão só existe com a
condição de que haja o Outro. Neste
momento ele revela que ao contrário do que se pensa, o outro, no cenário do ato
perverso, só é porque tem forma, isto é, quando provido de um corpo e porque “encarna uma silhueta que pode ser
deslocada no espaço, e sobre a qual se podem praticar manipulações”. O mundo
perverso, afirma o autor, é um mundo sem outrem, isto é, o outrem se reduz ao
papel de figurante sem alma; a perversão é o universo em que domina a
repetição. Com isto, fala-se também do masoquista, não como um coitado na mão
do perverso, mas como aquele que toma o lugar do objeto na fantasia do
outro sendo um senhor que idealiza formas de dor.
Compreendemos agora por que o masoquista não
é propriamente um escravo, mas um senhor, um senhor que fabrica formas e
semblantes da dor. O perverso é o mestre do semblante; ele discerne e destaca o
semblante, o fetichiza e se apropria dele [...] p. 139.
O grito é capaz de
despertar a dor, produzi-la. A exemplo da campainha de Pavlov capaz por si só
de despertar a fome e fazer o cão salivar, o grito é igualmente capaz de despertar
a dor, assim como o medo de ver reaparecer a causa da agressão. Podendo ser memória,
excitação da sensação dolorosa, mas sem agressor, uma sensação alucinada. Ele
reflete, refrata e depois desencadeia a dor. Afirma o autor que a relação entre
o grito e a dor alucinada fundamenta o significante e o afeto. A definição
psicanalítica do afeto retoma a concepção darwiniana. O afeto “é uma repetição,
a repetição de um acontecimento traumático muito antigo o afeto vivido hoje é a
reminiscência de uma experiência passada, mais exatamente o símbolo de um
trauma originário. O afeto é pois um símbolo, ou melhor, um significante”,
Freud inspirado por Darwin, p. 149.
Encontramos neste trecho o
autor apresentando dois termos usados por Freud: ‘ válvula’ e ‘bomba aspirante’
ilustrando a força que aspira e esvazia toda a libido. A posição que o analista
pode adotar diante da dor e do grito dos seus pacientes é formular as perguntas
corretas. Não importa ler mil textos se não fizer o mais importante que é fazer
a pergunta correta. A relação da teoria com a prática, diz o autor, passa por
perguntas. O “savoir-faire”, isto é “Saber
Fazer” do analista é o saber interrogar-se. Para formações
psíquicas como a dor e o grito, a reflexão e as perguntas não bastam; é preciso
mais, isto é ‘fazer as trevas para
iluminar o ponto obscuro’, “polarizar- se sobre o ponto mais opaco, e então
ver, isto é visualizar o real, quase aluciná-lo”, p. 155.
Nas palavras de Freud: ‘O
luto é a perda, a reação à perda de um objeto de amor.’ Não há luto por alguém
que não tem um peso significativo em nossa vida, mas por alguém que amamos
fortemente: ‘objeto eleito pela escolha narcísica’. “O objeto mais narcísico,
aquele pelo qual temos de nos enlutar, é o pênis”. Neste particular o autor
fala da necessidade de ler ‘Luto e melancolia’
e um artigo intitulado ‘O declínio do complexo de Édipo. O falo é objeto
fálico imaginário de uma castração. O pênis do menino é perdido, ou seja, a
criança neutraliza o seu órgão e o eleva à dignidade de significante, isto é,
põe palavras no lugar do pênis, por não poder dormir com a mãe, e ela declara
seu amor. A segunda perda, ao invés de suscitar significantes, ao invés de
simbolizar, a criança se põe no lugar do objeto, isto é, identifica-se com o
órgão peniano. “[...] dessa identificação que nascerá o objeto fálico
imaginário”, p. 161.
Na observação do “Luto e
melancolia”, pensa-se que a tarefa maior que o eu deve cumprir durante o luto é
se desligar das lembranças do morto, isto é, desinvestir. Mas se há dor, é por causa
da separação gerada no deslocamento dos investimentos que deixam a
representação de objeto para difundir-se no eu como investimentos narcísicos.
Enfim, o autor constatou que a dor não é imediatamente ligada à perda, mas ao
trabalho do luto, entendendo-se que a palavra ‘luto’ significa não ‘perda’, mas
reação à perda. Freud, diz o autor, escreveu: ‘A dor corporal supõe um
superinvestimento da representação psíquica do local lesado do corpo. ’
Comparando categorias de dor, física e psíquica, a dor não se deve ao destacamento, mas ao superinvestimento. A
representação de objeto é tão superinvestida na dor do luto quanto a
representação do local lesado do corpo na dor corporal, p. 165.
O investimento do objeto como objeto perdido [isto é,
da representação do objeto
amado e perdido] é tão intenso quanto o da dor corporal [investimento da representação do local lesado do
corpo]. p. 165
Então se estabelece um insight, a
contraposição de uma dor violenta
provocada por um incidente real e a lembrança do afeto doloroso. A dor do
passado, diz ele, fora provocada por agente real e externo ao passo que o afeto
é estimulação interna. ‘No caso de uma experiência dolorosa, [a] fonte é
evidentemente a quantidade de energia proveniente do exterior; no caso dos
afetos [dolorosos], é a quantidade de energia interna liberada pelo
trilhamento.’ A
antiga dor traumática é reativada por uma antiga dor. Freud a chama de ‘afeto’;
e o fenômeno de sensibilização dos neurônios, de ‘trilhamento’. p. 174.
‘[Sendo] dependentes do
objeto de amor escolhido, [...] nós nos expomos à mais forte das [dores] se somos desprezados por ele
ou se o perdemos por motivo de infidelidade ou de morte.’ Nesta palavras
enfatizadas pelo autor percebemos uma grande verdade prática que é a falta de
proteção ao sofrimento quando se ama, então ele complementa: “ Perder o amor do
amado é também perder o que era o centro organizador do meu psiquismo”. Mas no
caso do luto? O luto só ocorre, diz ele, quando há identificação com a mesma
fantasia. ‘Quando o objeto [amado e perdido] não tem uma importância tão
grande para o eu, reforçada por mil laços, a sua perda também não é capaz de
causar um luto.’ Dr. Nasio menciona Lacan no fragmento: ‘Estamos de luto
por alguém de quem podemos dizer: [Eu era a sua falta]. Estamos de luto por
pessoas que tratamos bem ou mal, e para as quais não sabíamos que cumpríamos a
função de estar no lugar da sua falta. Lacan’. Então Lacan
questiona “O que é o luto? O luto é uma
retirada do investimento afetivo da representação psíquica do objeto amado e
perdido. O luto é um processo de desamor. É um trabalho lento, detalhado e
doloroso. Pode durar dias, semanas e até meses. Ou ainda toda uma vida...” p.
184.
“Freud afirma que o bebê sente angústia e
dor”. Nesta perspectiva ressalta o autor, o lactante confunde esses dois
sentimentos, até porque não faz distinção de uma perda temporária para uma
definitiva e, assim , seu sentimento está misturado ( angústia e dor). Na idéia
do autor a criança a partir de 2 anos já pode discernir tal sentimento, contudo
de acordo com as teorias de Piaget, na fase pré-operatória ( de 2 a 6/7 anos) o
lactante não demonstra já possuir tal habilidade e capacidade de discernimento,
até porque a criança nesta fase ainda
tem confusão entre fantasia e realidade, o pensamento é pré-lógico, sua orientação
é apenas pela percepção, possue falha em julgamento e moral; dessa forma
entendemos que tal percepção se dá no período operatório concreto. Enfim, a bem
da verdade, “uma situação de perigo é diferente de uma situação traumática,
porque o perigo causa angustia e o trauma dor. ‘A situação na qual [a
criança] sente a ausência da mãe não é para ela [sendo mal compreendida] uma
situação de perigo, mas uma situação traumática, ou mais exatamente, ela é
traumática se a criança sente nesse momento uma necessidade que a mãe deve
satisfazer.’ p. 188. O Dr. Nasio reporta, ainda, que “O ciúme é a reação a uma suposta perda do amor
que meu amado desvia de mim para um rival”, p. 189.
Temos todas as razões
para admitir que as sensações de dor, como outras sensações de
desprazer, transbordam para o domínio da excitação sexual e provocam um
estado de prazer; é
por isso que se pode também consentir no desprazer da dor. Uma vez que
sentir dor se tornou um alvo masoquista, o alvo sádico, infligir dores,
também pode aparecer, retroativamente: então, provocando essas dores para
outros, goza-se de modo masoquista na identificação com o objeto sofredor.
Naturalmente, goza-se, em ambos os casos, não com a própria dor, mas com
a excitação sexual que a acompanha. Gozar a dor seria pois um alvo
originariamente masoquista, mas que só pode tornar-se um alvo pulsional para
aquele que é originariamente sádico. p.
190.
O Dr. Nasio reforça a ideia de que o desprazer
é desejo, mas não é dor. O masoquismo é o gozo de ser reduzido ao objeto do
gozo do Outro. “[...] o cúmulo do gozo masoquista não está tanto no fato
de que ele se oferece para suportar ou não esta ou aquela dor corporal, mas nesse extremo
singular [...] da fantasmagoria masoquista, essa anulação propriamente dita do
sujeito na medida em que ele se faz puro objeto.” p. 192.
O masoquismo,
efetivamente, se define precisamente pelo fato de que o sujeito assume uma
posição de objeto no sentido acentuado que damos a essa palavra, o de um dejeto
ou do resto do advento subjetivo, p.
193.
Enfim, os sofrimentos da modernidade como fatores
causadores do alcoolismo são observados, em particular, quando no século XX a
educação foi marcante na preparação de mão-de-obra para o mercado de trabalho.
Com o avanço da industrialização e as transformações do mundo do trabalho rumo
à denominada “economia do conhecimento”, a permanência dos trabalhadores no
mercado de trabalho dependia da sua preparação e adaptação às novas exigências
do mercado.
O uso das novas tecnologias de informação e comunicação
caracterizam o fenômeno de exclusão dos que não têm acesso às novas
tecnologias. Fora isto, a educação sofreu processo de privatização onde o
acesso tornou-se mais restrito.
As desigualdades de gênero e de etnia são mantidas nas
escolas, pelos comportamentos em sala de aula, na relação aluno-aluno e professor-aluno.
Todos este fatores contribuem negativamente no processo de exclusão do
trabalhador que não conseguiu se adaptar. Com isto, o despreparo
técnico-profissional aumenta o número de desempregados.
As empresas diante da competitividade não conseguem
esperar que o profissional se prepare... elas querem o profissional pronto para
produção. Este profissional, inoperante e impotente é dispensado e sente-se só,
triste e desesperado. Os recursos do auxilio desemprego não são suficientes, a
esposa reclama, os filhos choram e o desespero torna-se alarmante, o que fazer?
Este sofrimento devido à modernidade tem levado alguns a fuga da realidade e ao
uso compulsivo de álcool. É sabido que o etanol provoca, muitas vezes, o
esquecimento. Contudo é necessária uma dosagem cada vez mais alta para alcançar
o mesmo nível de esquecimento.
Não é apenas o
desemprego que leva ao alcoolismo. A mídia impõe cada vez mais a necessidade do
ter. Todos têm... “o marido da vizinha ganha menos e comprou”. Quem não tem é
fraco, desconsiderado e criticado, dessa forma, faz uso das facilidades do
crédito e se afoga nas dívidas até que a ficha cai e percebe-se o quanto está
comprometida a renda familiar. Noites são perdidas em cálculos sem soluções
favoráveis; as contas começam a chegar; as empresas de cobranças enviam cartas
e telefonam, mas o pior é quando se apela também aos meios não oficiais de
créditos que proporcionam o aparecimento do cobrador que geralmente não é
amistoso e faz ameaças. O desespero também se instala levando homens e mulheres
ao alcoolismo.
Fora estes pontos abordados, queremos relembrar ainda
que algumas mulheres começam o uso abusivo porque tem vida sacrificada devido à
pobreza, a violência doméstica, a falta de instrução que lhe custou à perda do
controle da natalidade e consequentemente um processo depressivo cuja fuga se
fundamenta no alcoolismo.
Reginaldo Silva de Lyra
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