O
que até então era apenas objeto de especulação ou de interpretações alegóricas
ou místicas, de cunho popular, passa a fazer parte do rol de estudos de base
objetiva. Segundo Freud,
“Os sonhos nunca dizem respeito a trivialidades: não permitimos que nosso sono seja perturbado por tolices. Os sonhos aparentemente inocentes
revelam ser justamente o inverso quando nos damos ao trabalho de analisá-los”
(FREUD, 1996, p. 213).
Como
bem afirma FROMM, Freud “reconheceu, pela primeira vez, o sintoma neurótico
como algo determinado por forças dentro de nós mesmos, como algo que faz
sentido quando se possui a chave para entendê-lo” (FROMM, 1973, P. 45).
Ainda
que marcada por uma forte sexualização em sua interpretação e restrita à ideia
de que os sonhos sempre são realizações de desejos, a teoria freudiana serviu
de base para desenvolvimento de novos caminhos para se chegar ao Inconsciente a
partir do reconhecimento das imagens geradas nos períodos de sono.
Um
desses novos caminhos interpretativos foi proposto por Carl Gustav Jung, cujos
seminários sobre interpretação de sonhos realizados em língua inglesa no
período entre 1928 e 1930 chegam agora ao Brasil pela Editora Vozes (Seminários
sobre análises de sonhos: notas do seminário dado em 1928-1930 por C.G. Jung.
Organização de William McGuire. Tradução de Caio Liudvik. Petrópolis, Vozes,
2014). Durante muitos anos, esse material ficou restrito a um pequeno e seleto
grupo e só tinham acesso a ele aqueles analistas que tivessem aprovação das
instituições que os mantinham. Graças ao trabalho de organização desenvolvido
inicialmente por R.F.C. Hull e complementado por William McGuire, os
apreciadores da obra de Jung, estudantes e profissionais de psicologia e
psicanálise têm em mãos um material riquíssimo em conteúdo para aprofundamento
numa das áreas mais controversas da psicologia.
Como
ser objetivo com algo tão subjetivo? Nesse contexto, JUNG aponta um sinal: “O
sonho é uma tentativa de assimilar coisas ainda não digeridas. É uma tentativa
de cura” (JUNG, p. 43). E ao longo dos seminários, ele apresenta um conjunto de
sonhos de seus pacientes e os coloca em discussão com o grupo de estudos. A
cada página ele vai descortinando possibilidades, abrindo caminhos de
interpretação, partindo de referenciais do próprio sonhador, bem como
estabelecendo ligações com temas universais (um sonho com um touro, por
exemplo, leva Jung a fazer uma digressão sobre a relação com Mitra e a
elaboração da vida social).
Um
detalhe interessante desta obra é a manutenção de certo tom mais trivial do
discurso. As transcrições feitas mantiveram a fluência da palavra do médico
suíço, o que nos permite acompanhar o raciocínio e, ao mesmo tempo, sentir como
as ideias iam sendo construídas na medida em que apresentadas pelo autor.
Também são mantidos os diálogos e intervenções dos participantes. Há momentos
em que é possível perceber a sutileza do humor de Jung ao abordar algumas
questões. Em outros, flui um conjunto de citações históricas e conhecimentos de
culturas diversas que embasaram e deram sustentação a muito do que Jung
desenvolveu em suas teorias. É como se estivéssemos frente a frente com ele,
sentindo também nosso Inconsciente mobilizado pelo conjunto sistêmico de seu
raciocínio.
Como
citado anteriormente, há traços referenciados à teoria freudiana, mas Jung já
aponta novos rumos em seu trabalho, desconstruindo a abordagem de seu iniciador
na Psicanálise. Enquanto Freud postulava que nos sonhos certas imagens oníricas
seriam expressões disfarçadas de algum sentimento (ao invés do paciente sonhar
com o próprio médico, no sonho apareceria outra pessoa para representá-lo, como
um mecanismo de disfarce, um ocultamento que precisaria ser desvendado), Jung
já busca uma concretude maior em seu objeto de estudo:
“Afirmo que o inconsciente diz o que quer dizer. A natureza
nunca é diplomática. Se a natureza produz uma árvore, é porque quis fazer uma
árvore, não se enganou querendo fazer um cachorro. E assim o inconsciente não
busca disfarces, nós é que o fazemos” (JUNG, p. 51).
Ele
extrapola o conceito de sexualidade e apresenta uma abordagem que vai do
simbólico ao histórico, objetivando a construção de uma nova imagem do sujeito,
que se vê frente a frente com sua realidade interior querendo ser conhecida.
Jung
apresenta nesses seminários praticamente todos os temas com que trabalhou ao
longo de sua trajetória na construção da Psicologia Analítica: anima, animus,
inconsciente coletivo, sombra, entre outros. É num destes seminários que ele
apresenta pela primeira vez o conceito de Sincronicidade, que somente em 1930
viria a ser desenvolvido formalmente em livro.
Os
“Seminários sobre análise de sonhos” vêm enriquecer sobremaneira a literatura
de psicologia disponível em língua portuguesa, acrescentando valiosas
informações à tão vasta obra de Carl Jung e abrem um leque de opções para o
estudo sistemático deste componente tão essencial em nossas vidas, o sonho, e
que tantas vezes tratamos como uma coisa engraçada ou sem sentido.
Para
além desta compreensão, os seminários mergulham a fundo na dinâmica do
Inconsciente e sua profusão de imagens que revelam seus significados na medida
em que compreendemos sua dinâmica, seu movimento, sua historicidade:
“São pequenos dramas, cada um com seu preâmbulo, situação
dramática, catástrofe e solução, embora de certa forma estáticos. Porém, se
analisarmos uma série de sonhos, descobriremos que há um movimento, um
movimento circular, ou melhor, uma espiral. E ainda, isto nos dá uma maior sensação
de certeza e segurança em saber que uma suposição equivocada poderá ser
corrigida ou verificada nos sonhos seguintes; e conseguimos ter uma muito
melhor impressão da análise de sonhos quando podemos seguir uma série de sonhos
da mesma pessoa” (JUNG, p. 293).
Provocador
e perturbador de nossas consciências com seus conceitos que foram tidos por
muitos como mais místicos do que científicos, Jung é uma referência fundamental
para quem deseja se aprofundar no conhecimento da mente humana e trabalhar no
sentido de levar o homem a sua individuação, fazendo a integração completa de
todo o seu ser.
Fonte: https://psicologado.com/resenhas/a-analise-dos-sonhos-e-o-conhecimento-da-natureza-humana © Psicologado.com
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